terça-feira, 31 de maio de 2016

JOÃO DE FERRO- CONTOS DE GRIMM SIL_ASMR

 Era uma vez um rei que tinha uma floresta muito grande, povoada de caça de todas as espécies. Certa ocasião, mandou um caçador até lá, para que trouxesse um cervo. O homem, porém, não voltou.
    - Talvez lhe tenha acontecido alguma coisa, - pensou o rei e, no dia seguinte, mandou dois caçadores à sua procura. Mas também estes não voltaram. No terceiro dia, reuniu todos os seus caçadores e lhes disse:
    - Percorram o bosque inteiro até encontrarem os três desaparecidos.
    Os dias foram passando, mas nenhum do grupo regressou. E os cães que eles levaram, também nunca mais foram vistos.
    Desde então, nenhum a pessoa quis mais entrar naquele bosque, que se tornou silencioso e solitário. Só de vez em quando via-se voar sobre ele uma águia ou um condor. Assim passaram-se muitos anos, até que um dia um caçador de outro país apresentou-se ao rei. Pediu que ele desse provisões e ofereceu-se par penetrar na misteriosa floresta. O soberano, a princípio, não quis dar-lhe permissão, dizendo:
    - É um lugar sinistro. temo que não terás melhor sorte que os outros e que não sairás dele.
    Mas o caçador insistiu:
   - Deixe-me tentar, sob minha responsabilidade, senhor; eu não conheço o medo.
   E o caçador penetrou na floresta, seguido do seu cão. Não demorou muito, o cachorro descobriu uma caça e se pôs a persegui-la. Mal porém havia andado alguns passos, encontrou-se ante um charco profundo, que o obrigou a deter-se. Um braço nu saiu da água e, apanhando o cão, submergiu com ele. Vendo aquilo, o caçador deu volta e foi buscar uns homens munidos de  baldes, com os quais esvaziaram a água do charco. Quando o fundo ficou descoberto, apareceu um indivíduo  de aspecto selvagem. Tinha o corpo cor de metal enferrujado e uma cabeleira que lhe tapava o rosto e ia até ao joelhos. Ataram-no com cordas e o conduziram ao palácio. Ali todos ficaram assombrados ante seu aspecto e o rei mandou encerrá-lo numa jaula de ferro, que foi colocada no pátio. Proibiu ainda, sob pena de morte, que alguém abrisse a porta, confiando a chave à rainha em pessoa. Daquele dia em diante, todos puderam andar, tranquilos, pela floresta.
     O rei tinha um filho de oito anos, que estava um dia brincando com sua bola de ouro no pátio do palácio. Em dado momento, a bola veio cair na jaula. o menino correu até lá e pediu:
    - Dá-me a minha bola.
    - Só se abrires as porta, - respondeu o selvagem.
    - Não, - retrucou o menino, - isso eu não faço, porque o rei meu pai o proibiu.
  Dito isto, escapou  correndo.
 No dia seguinte voltou a reclamar sua bola e o homem insistiu:
   - Abre-me a porta.
     O pequeno, porém, não atendeu.
     No terceiro dia, depois que o rei saiu à caça, o rapazinho veio de novo e disse ao homem.
    - Mesmo que eu quisesse , não  te poderia abrir a porta; não tenho a chave.
    Disse-lhe, então, o selvagem:
     - Está embaixo do travesseiro da tua mãe. Ali poderás apanhá-la.
   O menino, que queria antes de tudo o seu brinquedo, esqueceu todas as recomendações e trouxe a chave. A porta se abriu, pesadamente, e o pequeno apertou o dedinho nela. Depois de aberta, o selvagem saiu, entregou a bola ao príncipe e partiu rapidamente. O rapazinho ficou amedrontado e começou a chorar e a gritar:
     - Selvagem , não vás embora! Levarei uma surra quando me descobrirem! Não vás embora, meu selvagenzinho!
     O homem voltou, pôs o pequeno aos ombros e entrou no bosque a passos largos.
     De regresso, o rei notou, logo, que a jaula estava vazia e perguntou à rainha o que acontecera. Esta, porém, de nada sabia. Procurou a chave e não a encontrou. Chamou o menino, mas não obteve resposta. Aflito, o rei enviou seus criados em busca do seu filho, mas não o acharam. Foi difícil adivinhar o que acontecera e houve grande tristeza na Corte, onde todos gostavam muito do pequeno príncipe.
    Enquanto isso, o selvagem voltara ao bosque. desceu o menino dos ombros e lhe disse:
    - Não tornarás a ver teu pai nem tua mãe. Mas ficarás a meu cuidado, pois me devolveste a liberdade e tenho pena de ti. Se fizeres tudo o que te mandar, passarás muito bem. Possuo  mais riquezas e ouro que qualquer pessoa do mundo.
    Preparou para o menino um leito de musgo, onde este logo adormeceu. No dia seguinte, o homem o conduziu a uma fonte e lhe disse:
    - Estás vendo como esta fonte é límpida e clara como cristal? Senta-te aí perto e cuida para que nada caia nela, pois se tornaria impura. Virei todas as tardes para ver se cumpriste minha ordem.
    O menino sentou-se ao lado da fonte e, de vez em quando, via aparecer nas suas águas um peixe ou uma serpente de ouro, enquanto ficava atento para que nada caísse nela. De repente, começou a sentir uma dor forte no seu dedo, por instinto, o mergulhou na água. retirou-o em seguida e viu que se tornara dourado. Fez tudo para que desaparecesse a cor do ouro, mas em vão.
   À tardinha, o homem de ferro apresentou-se, olhando o menino, perguntou:
    - Que aconteceu à fonte?
    - Nada, nada, - respondeu o pequeno, escondendo a mão para que não lhe visse o dedo. mas o homem disse-lhe:
     - Meteste o dedo na água. por esta vez passa, mas cuida para que no futuro não deixes cair nela coisa alguma.
    No dia seguinte, bem cedo, o rapazinho foi à fonte para vigiar. O dedo começou, de novo, a  lhe doer e ele levou a mão à cabeça . Nisto, teve a infelicidade de lhe  cair um fio de cabelo na água. Tirou-o, sem perda de tempo, mas já estava completamente dourado. E o homem de ferro, ao chegar, foi logo dizendo:
     - Deixaste cair um fio de cabelo na água. Vou perdoar-te mais uma vez. Mas, se isso tonar a acontecer, a fonte ficará maculada e não poderás continuar comigo.
     No terceiro dia, o rapazinho manteve-se junto à fonte sem mover o dedo, ainda que doesse muito. Como o tempo demorava a passar, ele quis olhar-se no espelho das águas e, ao inclinar a cabeça para ver bem o seu rosto, os cabelos longos lhe caíram dos ombros e as pontas se molharam na fonte. Ergue-se, imediatamente, mas todo o seu cabelo já estava dourado e brilhava como o sol. Podem imaginar o susto do pobre menino! Tomou seu lenço e o atou na cabeça, para que o homem de ferro não o visse .Mas quando o homem veio, já sabia de tudo e ordenou:
     - Tira o lenço!
    E apareceu, então, os cachos dourados do menino. Ele procurou desculpar-se, mas de nada lhe adiantou.
   - Não venceste a prova e não podes continuar aqui. Sai a andar pelo mundo, onde ficarás conhecendo o que é a pobreza. Mas, como tens bom coração e eu te quero bem, vou conceder-te um favor. Quando te encontrares em apuros, corre à floresta e grita:" João de Ferro!" Virei em teu auxílio. Meu poder é grande, maior do que imaginas, e tenho ouro e prata em abundância.
     O príncipe abandonou o bosque e se pôs a andar, sozinho e perdido, sem saber para onde ia. Até que enfim chegou  a uma grande cidade. Procurou trabalho mas não encontrou, pois nada sabia fazer para ganhar a vida. Finalmente, apresentou-se no palácio do rei e perguntou se o queriam como criado. As pessoas da corte não sabiam o que fazer dele, mas, como lhes era simpático, permitiram que ficasse. O cozinheiro tomou-o a seu serviço, dizendo que poderia trazer lenha e água e varrer cinzas.
     Certa ocasião, quando nenhum dos camareiros estava presente, o cozinheiro mandou que ele fosse servir a comida real. o rapazinho, não querendo que vissem seus cabelos de ouro, conservou o gorro na cabeça. O rei, que nunca vira tamanho desaforo, disse-lhe:
    - Quando te apresentares à mesa real, deves tirar o chapéu.
    - Oh, meu Senhor! - respondeu o menino. - Não me atrevo, pois tenho a cabeça cheia de feridas.
    O rei mandou chamar o cozinheiro, repreendeu-o por haver tomado a seu serviço aquele rapaz e ordenou que o despedisse imediatamente. O cozinheiro, porém, teve pena do menino e o trocou pelo auxiliar do jardineiro.
    Desde então, o rapaz trabalhava no jardim, plantando e regando, cavando e virando a terra, e exposto às intempéries.
    Aconteceu que, num dia de verão, o calor era tão forte que ele tirou o gorro. E os raios do sol, ao tocarem seu cabelo, fizeram-no brilhar tanto que a luz foi projetar-se no dormitório da princesa. Esta levantou-se  para ver de onde vinha o reflexo. Vendo o rapazinho, gritou-lhe:
    - Rapaz, traze-me um ramo de flores!
    O jovem pôs logo o gorro na cabeça e, apanhando umas flores silvestres, fez dela um ramalhete. Quando ia subindo a escada para levá-las à princesa, encontrou-se com o jardineiro.
    - Como te atreves a levar um ramo de flores tão comuns para a princesa? - disse-lhe o homem. - Corre depressa e escolhe as mais raras e belas.
     - Oh, não! - retrucou o jovem. - As flores silvestres tem um aroma mais forte e lhe irão agradar muito mais.
    Entrou no aposento e a filha do rei lhe disse:
    - Tira o gorro. Não fica bem estares de cabeça coberta na minha presença.
     Ele, porém, voltou a justificar-se como já o fizera anteriormente:
   - Não posso, tenho a cabeça cheia de feridas.
    Aí a princesa, com um gesto rápido, tirou-lhe o gorro, e a dourada cabeleira lhe caiu sobre os ombros. Era tão bela que dava gosto olhá-la. O rapaz quis escapar, mas ela o reteve, apanhando-o pelo braço, e lhe deu uma porção de moedas. Sem fazer caso do ouro, foi ao jardineiro e lhe entregou tudo.
    Podes dar essas moedas a teus filhos, para que brinquem com elas, - disse.
    No dia seguinte a princesa ordenou, novamente, que lhe trouxesse um ramalhete de flores do campo e, quando se apresentou com ele, quis tirar-lhe outra vez o gorro, mas o rapaz o segurou com ambas as mãos. Ela deu-lhe outra porção de moedas, que ele entregou ao jardineiro para seus filhos, como na véspera. A mesma cena se repetiu no terceiro dia. A princesa não pode tirar-lhe o gorro e o rapaz não ficou com o dinheiro.
     Algum tempo depois, o país entrou em guerra. O rei convocou suas tropas, mas temia não poder resistir ao inimigo, que era poderoso e tinha um exercito imenso. Disse, então, o auxiliar do jardineiro:
    - Já sou homem e quero ir para a guerra. Deem-me um cavalo.
     Os outro começaram a rir e lhe responderam:
    - Depois de partirmos, vai à estrebaria, que lá deixaremos um pra ti.
    Quando a tropa se afastou, ele foi à estrebaria e encontrou ali um cavalo que era coxo e, assim, caminhava rengueando. Apesar disso, ele montou e encaminhou-se para a floresta sinistra. Ao chegar à sua margem, gritou por três vezes: "João de Ferro!, com tanta força que a voz reboou entre as árvores.
    Imediatamente o selvagem apresentou-se e perguntou:
    - Que desejas?
    - Quero um bom cavalo, pois vou para a guerra.
    - Tu o terás e mais, ainda, do que pedes.
    O selvagem voltou a meter-se no bosque e, pouco depois, de lá saía um criado de estrebaria, conduzindo um fogoso cavalo que mal podia ser contido. Atrás, vinha um exército com armaduras de ferro e espadas que cintilavam ao sol. O nosso jovem entregou seu cavalo coxo ao rapazinho de estrebaria, montando o outro, pôs-se à frente da tropa. Quando se aproximaram do campo de batalha, já boa parte dos homens do rei haviam sucumbido e o resto estava prestes a fugir. mas aí o jovem e seus guerreiros atacaram, caindo o inimigo como um furacão, derrubando tudo quanto se atravessava em seu caminho. As tropas inimigas se lançaram em fuga, perseguidas, porém, pelo jovem, que acabou matando até o último homem. A seguir, em vez de ir ao rei, conduziu seus homens para a floresta. Tornou, então, a chamar João de Ferro.
    - Que desejas? - indagou o selvagem.
     - Vim devolver esta montaria e tuas tropas e pedir que me entregues de novo o meu cavalo.
     Assim foi feito e o rapaz regressou ao palácio, montado em seu animal coxo.
    Quando o rei chegou à Corte, sua filha saiu a recebê-lo e o felicitou pela vitória.
    - Não fui eu o vencedor, - respondeu-lhe o rei,- mas um cavaleiro desconhecido que veio em meu auxílio frente de suas tropas.
     A princesa indagou quem era o cavaleiro, mas o pai não sabia.
    - Perseguiu o inimigo,- disse ele, - e depois não o vi mais.
    A jovem foi ao jardineiro e perguntou o que era feito do seu auxiliar. Rindo, o homem lhe respondeu:
    - Acaba de chegar em seu cavalo coxo e todos o receberam às gargalhadas, gritando: "Aí vem o nosso herói!" E quando lhe perguntaram: "Onde estiveste dormindo durante a batalha?" - ele respondeu: "Fiz um bom trabalho e sem mim tudo teria acabado mal." Aí mesmo é que riram dele a valer!
    Mais tarde, o rei disse à sua filha:
   - Vou organizar uma grande festa que durará três dias, e tu irás jogar na arena uma maça de ouro. Talvez o desconhecido se apresente.
  Quando anunciaram a festa, o rapaz foi à floresta e chamou João de Ferro.
    - Que desejas? - perguntou este.
    - Que seja eu o cavaleiro que pegue a maça de ouro da princesa.
    - Já podes contar com ela, - respondeu João de Ferro. - E terás, também, uma armadura vermelha e um cavalo zaino.
    Ao chegar o dia da festa, o rapaz apareceu a galope e, situando-se entre os demais cavaleiros, não foi reconhecido por ninguém. A princesa apresentou-se e jogou uma maça de ouro a eles. Ninguém conseguiu apanhá-la senão o nosso herói. Mas nem bem a teve em seu poder, fugiu a toda brida. No segundo dia, João de Ferro lhe deu uma armadura branca e um cavalo da mesma cor. Novamente foi ele quem se apossou da maça e outra vez se afastou a galope.
    O rei zangou-se e disse:
    - Isso não é permitido. Terá de apresentar-se e dizer o seu nome.
     Deu ordem para que, se o cavaleiro da maça voltasse a comparecer, o perseguissem caso pretendesse escapar e o matassem se negasse a obedecer.
     No terceiro dia João de Ferro lhe deu uma armadura e um cavalo negros e ele votou a pegar a maça. Ao fugir com ela, os homens do rei o perseguiram, chegando-lhe tão perto que o feriram na perna com a ponta da espada. Apesar de tudo, conseguiu escapar, mas seu cavalo dava saltos tão grandes que o elmo lhe caiu da cabeça e seus perseguidores puderam ver que tinha o cabelo dourado. Regressaram ao palácio e contaram tudo ao rei.
    No dia seguinte a princesa perguntou ao jardineiro onde andava o seu ajudante.
    - Está trabalhando no jardim. É um rapaz estranho. Esteve na festa e só regressou ontem à noite. Além disso, mostrou a meus filhos três maças de ouro que havia ganho.
    O rei mandou chamá-lo à sua presença e o rapaz compareceu com seu gorro na cabeça. A princesa aproximou-se dele e lhe tirou, e com isso a sua cabeleira dourada lhe caiu sobre os ombros, mostrando um jovem tão formoso que todos os presentes ficaram maravilhados.
     - Foste tu o cavaleiro que esteve os três dias na festa, sempre com armaduras diferentes e que ganhou as três maças de ouro? - indagou o rei.
     - Sim,- respondeu o jovem,- aí estão as maças. - E, tirando-as do bolso, as alcançou ao rei. - E se quiserdes mais provas, podereis ver o ferimento que me causaram vossos homens ao me perseguirem. E sou também o cavaleiro que vos deu a vitória sobre o vosso inimigo.
     - Se foste capaz de realizar tais façanhas, não és um simples auxiliar de jardineiro. Dize-me : quem é teu pai?
      - Meu pai é um rei poderoso e, quanto ao ouro, tenho em abundância, tanto quanto desejo.
     - Sinto - disse o rei - que te devo grandes obrigações. Poderei retribuir-te de alguma maneira?
      - Sim, - respondeu o  jovem. - Dai-me a vossa filha por esposa.
     A princesa desandou a rir e exclamou:
    - Este não anda com rodeios, mas eu já havia notado, pela cabeleira dourada, que não era um auxiliar de jardineiro.
     E, aproximando-se dele, beijou-o.
    Por ocasião do casamento, seus pais compareceram alegres e felizes, pois haviam já perdido toda a esperança de rever seu filho querido. E quando todos estavam sentados à esplêndida mesa, a música cessou de repente, as portas se abriram e entrou um rei de porte majestoso, seguido de grande séquito. Dirigiu-se ao príncipe, abraço-o e lhe disse:
    - Eu sou João de Ferro. Haviam-me enfeitiçado, transformando-me naquele selvagem. Mas tu me salvaste e por isso todos os meus tesouros te pertencem. Fim

APRESENTADO NA LIVE DO TIKTOK SWEET_SIL, SIGAM SIL_ASMR.

 

domingo, 29 de maio de 2016

OS TRÊS OPERÁRIOS - CONTOS DE GRIMM

    Três operários tinham combinado correr mundo, juntos , e trabalhar sempre na mesma cidade. Mas aconteceu que um dia a situação piorou tanto que seus patrões não lhes puderam pagar e, por isso, ficaram os três sem recursos, até mesmo para comer.
    - Disse um deles:
    - Que faremos? É impossível continuarmos aqui. Teremos de partir e, se não encontramos trabalho na próxima cidade, combinaremos com o dono da hospedaria para  que cada qual lhe escreva dizendo o lugar onde se encontra. Assim, poderemos separar-nos na certeza de cada  um ter notícias dos outros.
      Os demais acharam ótima a ideia e juntos se puseram a caminho.
      Pouco depois encontraram um homem, muito bem trajado, que lhes perguntou quem eram.
    - Somos operários à procura de trabalho. Até agora sempre estivemos juntos. Mas infelizmente, se não acharmos emprego para os três, temos de nos separar.
    - Não se preocupem por tão pouco. - disse o homem. - Se fizerem o que eu lhes disser, não faltará trabalho nem dinheiro. - Chegarão , até, a ser grandes senhores e só andarão de carruagem.
     Respondeu um deles:
     - Concordamos, mas com a condição de que não haja prejuízo para nossas almas e nossa salvação eterna.
    - Não, - respondeu o desconhecido. - Por esse lado, não tenho interesse nenhum em vocês.
     Mas um dos rapazes, olhando-lhe os pés, notou que tinha um pé de cabra e outro de homem e não quis mais saber de conversa. Entretanto, o diabo - pois não era outro senão ele - assegurou-lhes:
      - Podem ficar tranquilos. Não pretendo apoderar-me da alma de vocês, mas sim da de outra pessoa, que já quase me pertence. Pouco falta para que ela encha as medidas.
      Diante dessa afirmação, os três aceitaram a oferta e o diabo lhes explicou o que queria deles: o primeiro deveria responder, sempre, a todas as perguntas: "Nós três", o segundo: " Por dinheiro" e o último: " Foi  justo". Deviam repetir essas frases, pela mesma ordem, abstendo-se de pronunciar uma palavra a mais. Caso não cumprissem, exatamente, tal ordem, ficariam logo sem bolsos cheios. De início o diabo lhes deu tanto dinheiro quanto podiam carregar. E mandou-lhes que, ao chegar à cidade, se dirigissem a determinada hospedaria.
     Assim, fizeram e, quando o dono da estalagem saiu para recebê-los e perguntou:
      - Desejam algo para comer ? - O primeiro respondeu:
     - Nós três.
     - Sim, - disse o homem. - Logo imaginei.
     O segundo acrescentou:
     - Por dinheiro.
     - Naturalmente! - exclamou o hospedeiro.
     - Foi justo, - disse o terceiro.
      - Claro que é justo, - concordou o proprietário.
       Depois de terem comido e bebido muito bem, chegou o momento de pagar a conta que o hospedeiro entregou a um deles.
      - Nós três, - disse este.
      - Por dinheiro, - acrescentou o segundo.
      - Foi justo, - terminou o terceiro.
      - Claro que foi justo. - disse o estalajadeiro, - paguem os três, que sem dinheiro nada posso dar.
    Pagaram-lhe mais do que havia pedido. E, ao ver tal coisa, os outros hóspedes comentaram:
      - Esses sujeitos são loucos!
      - Creio que são mesmo, -disse o hospedeiro.- Não regulem bem.
       Ficaram vários dias ali, sem pronunciar outas palavras a não ser: " Nós três", " por dinheiro" e " foi justo". No entanto, viam e sabiam de tudo o que se passava na hospedaria.
       Até que um dia chegou um comerciante rico, que trazia muito dinheiro consigo e que disse ao dono da casa:
     - Senhor hospedeiro, guarde esta importância para mim, pois aqueles três operários me parecem suspeitos; tenho medo que me roubem.
       O hospedeiro levou a maleta do viajante para o seu quarto e verificou que estava cheia de ouro. Deu então, aos três operários, um aposento no andar térreo e acomodou o negociante no de  cima.
   À meia-noite, quando viu que todos dormiam, entrou com sua mulher no quarto do homem e o matou. Cometido o crime, tornaram a deitar-se.
     Na manhã seguinte, houve grande alvoroço no albergue quando encontraram o cadáver do comerciante em sua cama, banhado em sangue. O dono da casa disse a todos os hóspedes, que se haviam reunido no  local do crime:
       - Isso é obra daqueles três loucos, - o que foi confirmado pelos presentes, que acrescentaram:
       - Pois quem mais poderia ter sido?
       O hospedeiro mandou chamá-los e perguntou?
      - Vocês mataram o comerciante?
      - Nós três, - respondeu o primeiro.
     - Por dinheiro, - acrescentou o segundo.
     - Foi justo, - disse o terceiro.
     - Ouviram todos? - indagou o hospedeiro. - Eles mesmos confessaram!
    Em consequência, foram conduzidos ao cárcere, para serem julgado. vendo que a coisa estava ficando preta, sentiram muito medo, mas à noite apresentou-se o diabo, que lhes recomendou:
     - Aguentem mais um dia e não ponham a sua sorte a perder. Ninguém lhes tocará num só cabelo da cabeça.
     Ao amanhecer foram levados ante o tribunal e o juiz procedeu ao interrogatório:
    - Vocês são os assassinos?
    - Nós três.
     - Por dinheiro.
    - Bárbaros! - exclamou o juiz. - E não temeram o pecado?
     - Foi justo.
    - Confessaram o crime e não se arrependeram!- exclamou o juiz. - Quem sejam executados em seguida?
     Foram , então levados ao cadafalso, figurando o hospedeiro entre os espectadores. Depois que os fizeram subir ao estrado, onde estava o carrasco de machado em punho, surgiu, de repente, uma carruagem puxada por quatro cavalos de pelo vermelho com sangue e que se aproximava rápida como o vento. da janelinha, um personagem fazia sinais com um lenço branco.
     Disse o carrasco.
    - Estão pedindo clemência! - E, de fato, gritavam da carruagem:
    - Parem!  - Parem!
     Nisto, o diabo, na figura de  um fidalgo magnificamente trajado, saltou do carro e falou:
    - Os três são inocentes! - e, dirigindo-se aos operários: - Já podem falar. Digam o que viram e ouviram.
    - Falou, então, o mais velho:
    - Não assassinamos o comerciante. O culpado está entre os espectadores. - E apontou para o hospedeiro. - Como prova disso, procurem no porão de sua casa, que encontrarão outras vítimas.
     O juiz ordenou que alguns guardas fossem à hospedaria e estes verificaram que tudo era verdade. Em vista disso, levaram o hospedeiro ao cadafalso e o decapitaram.
     Disse, então, o diabo aos três companheiros:
    - Agora apanhei a alma que eu queria. estão livres e com dinheiro para o resto da vida. FIM
 
   

 

A LUZ AZUL - CONTOS DE GRIMM

Era uma vez um soldado que, durante longos anos, servira lealmente a seu rei. Terminada a guerra, o rapaz foi chamado à presença  do soberano, pois havia recebido tantos ferimentos durante as batalhas que não podia continuar no serviço militar. Disse-lhe o rei:
    - Podes ir para casa que já não preciso de ti. Dinheiro não te dou ; só pago a quem me serve.
     E o soldado, não  sabendo como ganhar a vida, partiu aflito e cheio de preocupações. Andou o dia todo e, ao anoitecer, penetrou numa floresta. A escuridão era completa, mas ele avistou uma luz e se encaminhou para ela. E foi assim que chegou à casa de uma bruxa.
     - Dá-me pousada e alguma coisa para comer e beber,- pediu o soldado, - senão morrerei de fome.
     - Ora essa! - exclamou a feiticeira. - Quem alimentará um soldado errante? Mas vou ser boa contigo e te acolherei, se me fizeres o que eu te pedir.
    - Que desejas que eu faça? - indagou o soldado.
     - Que amanhã cavoques a terra do meu jardim.
    O soldado aceitou e no dia seguinte pôs-se a trabalhar, com afinco. Apesar disso, não conseguiu terminar antes da noite.
    - Estou vendo que hoje não aguenta mais, - disse a bruxa. - Fica outra noite, mas amanhã tens de cortar uma carrada de lenha.
    O soldado trabalhou o dia todo e, à tarde, a velha propôs que ficasse uma terceira noite.
    - O trabalho de amanhã é fácil, - disse-lhe , - Atrás da minha casa há um velho poço, seco, onde caiu minha lâmpada. Essa lâmpada tem uma chama azul que nunca se apaga; terás de ir buscá-la.
    No outro dia a bruxa o levou ao poço e o fez descer dentro de um cesto. O rapaz encontrou a luz e fez sinal para que a velha o içasse. Ela puxou a corda e, quando ele já se encontrava quase na beirada do poço, estendeu a mão para apanhar a lâmpada.
    - Não, - disse o rapaz, adivinhando suas más intenções, - não te darei a lâmpada até que eu esteja com os pés na terra.
     A bruxa enfureceu-se e soltou a corda, deixando-o cair no fundo do poço, e ali o deixou abandonado.
    O pobre soldado caiu no chão úmido, mas sem sofrer nenhum dano e sem que a luz azul se extinguisse. Mas de que adiantava aquilo? Compreendeu logo que não escaparia à morte. Por algum tempo ficou ali sentado, cheio de tristeza. Depois, metendo por acaso a mão no bolso, encontrou o cachimbo, que ainda estava com fumo pela metade. " Será meu último prazer"- pensou. Acendeu-o na chama azul e começou a fumar. Quando a fumaça principiou a espalhar-se pelo poço, apareceu, de repente, um  homenzinho escuro, que lhe perguntou:
       - Que mandas?
     - Que posso eu mandar? - retrucou o soldado, atônito.
     - Sou obrigado a fazer tudo o que mandares, - disse o anãozinho.
    - Bem, nesse caso ajuda-me, antes de tudo, a sair deste maldito poço.
    O homenzinho tomou-lhe a mão e o conduziu por um corredor subterrâneo, sem esquecer de levar, também, a lâmpada de luz azul. Pelo caminho, mostrou-lhe os tesouros que a feiticeira tinha escondido ali durante muitos e muitos anos. E o soldado levou tanto ouro quanto podia carregar.
    Logo que saíram do túnel, o rapaz disse ao homenzinho:
   - Agora amarra a velha feiticeira e leva-a para os juízes a condenarem.
  Pouco depois, viu passar a bruxa, montada num gato- do- mato, correndo como o vento e dando gritos medonhos. Não demorou muito, o anãozinho estava de volta.
      - Tudo feito! - disse ele. - A bruxa já está pendurada na forca. Que mandas agora, meu senhor?
     - De momento, nada! - respondeu o soldado. - Podes voltar para casa, mas fica atento para quando te chame.
      - Só precisas acender o cachimbo na chama azul para me teres em tua presença, - disse o anão e desapareceu de sua vista.
      O soldado regressou à cidade de onde havia saído. Instalou-se na melhor hospedaria e comprou belos trajes. Depois  pediu ao hospedeiro que lhe preparasse um quarto com o maior luxo possível. Quando tudo estava pronto e o rapaz se instalou no aposento, chamou o homenzinho negro e lhe disse:
     - Servi, lealmente, ao rei e, em troca, ele me despediu e fez passar fome. Agora quero vingar-me.
      - Que devo fazer? - perguntou o anãozinho.
      - Tarde da noite, quando a filha do rei estiver na cama, vê se a trazes para cá, adormecida. Quero fazê-la trabalhar como criada.
       - Para mim isso é facílimo, - observou o homenzinho, - mas para ti é perigosos. Tu vais te sair mal, se isso for descoberto.
      À meia-noite em ponto abriu-se a porta, de repente, e o anãozinho entrou com a princesa.
      - Vieste, bem? - exclamou o soldado. - Pois vamos ao trabalho! Traz a vassoura e varre o quarto.
      Depois que ela terminou aquele serviço, ordenou que se aproximasse de sua poltrona, estendeu as pernas e disse:
       - Tira-me as botas, - , tendo ela obedecido, atirou-as para ela. A jovem teve de apanhá-las, limpá-las e dar-lhes brilho. A princesa fez tudo isso sem resistência, sem abrir a boca e com os olhos semicerrados, pois, a falar verdade, ela ainda estava dormindo. Ao primeiro canto do galo, o anãozinho transportou-a para o palácio, deixando-a em sua cama.
    Quando, na manhã seguinte, a princesa se levantou, foi ao pai e lhe contou que tivera um sonho estranho.
     - Levaram-me pelas ruas com a velocidade do  raio, até o quarto de um soldado, onde tive que servir de criada, fazendo os trabalhos mais baixos, como varrer o chão e limpar botas. Foi um sonho, apenas, mas estou cansada como se, de fato, tivesse feito todas aquelas coisas horríveis.
     - Esse sonho...- murmurou o rei pensativo - esse sonho poderá ter sido realidade. Olha! Vou te dar um conselho: enche de ervilhas o teu bolsinho, mas deixa nele um pequeno buraco. Se vierem buscar-te outra vez, os grãos cairão e ficará uma pista na rua.
    Enquanto  o rei dizia isso, o anãozinho estava, invisível, ouvindo tudo. à noite, quando a princesa, adormecida, foi novamente transportada pelas ruas, caíram, de fato, alguma ervilhas de seu bolso, mas não puderam formar uma pista, porque o esperto homenzinho espalhara ervilhas em todas as ruas. E a filha do rei teve de servir de criada, novamente, até o galo cantar.
     De manhã, o rei mandou que seus soldados saíssem à procura da pista. Mas isso foi inútil! Todas as ruas estavam cheias de crianças juntando ervilhas e gritando.
     - Esta noite choveu ervilhas!
     - Teremos de pensar noutra coisa, - disse o rei - Quando fores dormir, não tires teus sapatos e, antes que voltes de lá, esconde um deles: tratarei de encontrá-lo.
          O homenzinho ouviu, também, aquele plano e quando, à noite, o soldado tornou a ordenar-lhe que trouxesse a princesa, tratou de dissuadi-lo, dizendo que o contra aquele plano astucioso não conhecia nenhum recurso, e que , se encontrassem o sapato em seu quarto, ele iria passar mau bocado.
     - Faz o que te ordeno! - retrucou o soldado.
      E a filha do rei teve de servir de criada uma terceira noite. Mas antes de a levarem de volta, escondeu um sapato embaixo da cama.
      No dia seguinte, o rei mandou procurar por toda a cidade o sapato de sua filha. Foi achado no quarto do soldado e este, a pedido do anãozinho, já ia mesmo saindo pela porta da cidade quando foi detido e lançado ao cárcere.
      Com a pressa da fuga, esquecera os maiores tesouros, a lâmpada azul e o ouro, restando-lhe, apenas, uma moeda no bolso. Quando, acorrentado, olhava tristemente pela janelinha da prisão, viu passar um de seus antigos companheiro de armas. O soldado o chamou e, ao aproximar-se o homem, disse-lhe baixinho:
       - Por favor, vai buscar um pequeno embrulho que deixei na hospedaria, que eu te darei uma moeda de ouro.
     O companheiro saiu depressa e trouxe o que lhe pedira o soldado. Este, a sós, acendeu o cachimbo e chamou o homenzinho.
      - Não tenhas medo, - disse o anão a seu amo. - Vai onde te levarem e não te preocupes. Só não te esqueças da luz azul.
     No dia seguinte, o soldado entrou em  julgamento e os juízes o condenara à morte. Quando o levavam para o lugar da execução, pediu ao rei que lhe concedesse uma última graça.
     - Qual? - perguntou o soberano.
     - Que me deixes fumar um último cachimbo, durante o caminho.
       - Podes fumar três, - respondeu o rei. - desde que não queiras que eu te poupe a vida.
         O soldado tirou o cachimbo; também tirou do bolso  a pequena lâmpada, que todos julgaram apenas um isqueiro, e acendeu o cachimbo na chama azul. Mal uns anéis de fumo subiram ao ar. o homenzinho apresentou-se, tendo nas mãos um cacete mair do que ele.
             - Que ordenas, meu amo?
             -  Dá uma boa surra nesses juízes e seus carrascos e também não perdoe o rei, que tão mal me tratou.
           E eis que o anãozinho saiu, zás-trás, como um raio, a distribuir bordoadas à direita e à esquerda. E os que atingia com seu cacete, caíam ao chão sem arriscar a mover um dedo. O rei ficou tão  aterrorizado que implorou perdão. E, para não perder a vida, deu ao soldado o reino e sua filha como esposa.  FIM

     

quinta-feira, 26 de maio de 2016

O CAÇADOR PROFISSIONAL - CONTOS DE GRIMM

  Era uma vez um rapazinho que tinha aprendido o ofício de serralheiro. Certo dia falou ao pai que desejava correr mundo para tentar a sorte.
   - Está bem, - concordou o velho, e deu-lhe um pouco de dinheiro para a viagem. O rapaz partiu em busca de trabalho mas, passando algum tempo, cansou-se da profissão e teve vontade de variar. Numa de suas andanças encontrou um caçador com seu traje verde, que lhe perguntou de onde vinha e para onde ia. O rapaz contou-lhe que era serralheiro, mas que isso já não lhe agradava como no princípio; gostaria de ser caçador e pediu que  o tomasse como aprendiz.
     - Se quiseres acompanhar-me, com muito prazer, - disse o homem.
     O rapaz trabalhou muitos anos a seu lado, aprendendo a arte de caçar. O mestre deu-lhe em pagamento apenas uma espingarda. parece pouco? Mas acontece que aquela arma tinha a qualidade de nunca errar um tiro. Assim, o jovem partiu sozinho, até que chegou a uma floresta muito grande que não podia ser atravessada num dia só. Ao anoitecer, trepou numa árvore alta, para que as feras não pudessem atacá-lo. perto da meia-noite, pareceu-lhe ver brilhar, ao longe, uma luzinha através das ramagens. Para orientar-se, prestou bem atenção. Resolveu descer. Mas antes, tirou o chapéu e seguiu avançando em linha reta. À medida que andava, a luz ia se tornando mais forte, quando chegou perto, viu que se tratava de uma fogueira, junto à qual três gigantes estavam sentados, assando um boi no espeto. Dizia um deles:
     - Vou provar a carne para ver se já está boa,- e arrancou um naco, que se dispôs a levar à boca.
     Nisto, o caçador, com um tiro, fez saltar a carne de sua mão.
    - Ora essa! - exclamou o gigante. - O vento levou meu pedaço de carne! - E serviu-se de novo. Mas, no momento em que levava outro naco à boca, o caçador o arrancou com um tiro certeiro. Irritado, o gigante deu uma bofetada no que estava a seu lado, dizendo-lhe:
     - Por que me tiraste meu pedaço de carne?
     - Não tirei coisa alguma, - replicou o outro. - Com certeza foi algum bom atirador.
     O gigante apanhou um terceiro pedaço, mas não conseguiu ficar com ele; o caçador o arrebatou de suas mãos com um tiro. Disseram, então, os gigantes:
     - Puxa! Dever ser um atirador extraordinário, capaz até de arrancar, a tiros, a comida da boca dos outros. Um sujeito assim é que nos servia. - E gritaram: - Aproxima-te, caçador, senta-te junto ao fogo e regala-te que não te faremos mal. Mas, se não vieres e nós te apanharmos, tu estarás perdido.
     O rapaz, então, aproximou-se, dizendo-lhes que era caçador profissional e que sua arma acertava sempre o alvo. Os gigantes logo o convidaram para que os acompanhasse. Disseram-lhe que seria bem tratado e contaram-lhe que, à saída do bosque, havia um rio muito grande e que na outra margem se erguia uma torre, onde morava uma bela princesa que eles, os três gigantes, tencionavam raptar.
    - De pleno acordo, - respondeu o caçador. - Isso é muito fácil.
     Mas os gigantes não achavam tão fácil assim.
     - Há uma coisa que deve ser levada em conta,- disseram eles. - Existe ali um cachorro que se põe a ladrar e desperta toda a corte quando alguém se aproxima. Por essa razão, ainda não conseguimos entrar lá. serás capaz de matar o diabo desse animal?
     - Claro! - respondeu  o caçador. - É brinquedo de criança.
     Em seguida tomou um barco e atravessou o rio. logo que chegou à terra, o cãozinho veio na sua direção, mas, antes que começasse a latir, ele o derrubou com um tiro. Vendo isso, os gigantes se alegraram, imaginando que já eram donos da princesa. Mas o rapaz quis ver primeiro como estavam as coisas e lhes disse que ficassem do lado de fora até que ele os chamasse. Entrou no palácio onde reinava profundo silêncio, pois todos dormiam. Abrindo a porta da primeira sala, viu um sabre pendurado na parede, todo de prata, com uma estrela gravada e o nome do rei. Ao lado, sobre uma mesa, havia uma carta lacrada. Abriu-a e leu  que quem dispusesse daquele sabre poderia tirar a vida a qualquer ente vivo, quando bem quisesse. Desprendeu a arma da parede e a colocou à cinta. Seguindo adiante, chegou a um quarto onde estava dormindo a princesa. A moça era lindíssima e ele ficou a contemplá-la, como que petrificado. Pensou consigo: "Como permitirei que essa moça inocente caia em poder de uns gigantes bárbaros, cheios de más intenções! " Olhando em redor, descobriu, embaixo da cama, um par de chinelinhos. O pé direito tinha bordado o nome do rei e uma estrela, e o pé esquerdo o da princesa, também, com uma estrela. A moça trazia no pescoço um lenço de seda, com os nomes, em letras bordadas a ouro, do rei e o seu, à direita e esquerda respectivamente. O caçador apanhou uma tesoura e cortou a ponta direita do lenço, que meteu na sua mochila: depois pegou o chinelo do pé direito com o nome do rei e o pôs ali também. a princesa continuava dormindo, tranquilamente. O rapaz cortou dali um pedacinho da fazenda, que juntou aos outros objetos, com todo cuidado, para não despertá-la e, ao chegar à porta, encontrou os gigantes, que o esperavam, certos de ele já vinha trazendo a princesa. Disse-lhes que entrassem, que ela já estava em seu poder, só não poderia abrir-lhes a porta; teriam de se introduzir por um subterrâneo que havia ali. Quando o primeiro apareceu na abertura, o caçador agarrou-o pelos cabelos e lhe cortou a cabeça num golpe só: depois puxou o corpo para dentro. Em seguida chamou o segundo e repetiu a façanha. Fez o mesmo com o terceiro e sentiu-se feliz por ter podido salvar a jovem de seus inimigos. Finalmente, cortou a língua dos três gigantes e as guardou na mochila. " Voltarei para casa e contarei a meu pai o que fiz," - pensou ele. - "Depois vou correr mundo e estou certo de encontrar a felicidade."
      Ao despertar o rei do palácio, viu os corpos dos três gigantes degolados. Dirigiu-se ao quarto de sua filha, acordou-a e lhe perguntou quem teria dado morte àqueles monstros.
    - Não sei, meu pai, - respondeu ela. - Dormi a noite inteira.
    Saltou da cama e, quando ia calçar os chinelos, notou que o pé direito desaparecera. Percebeu, também, que fora cortada uma ponta de seu lenço e que faltava um pedacinho de sua camisa. O rei mandou reunir toda a Corte, inclusive os soldados do palácio, e perguntou quem havia salvo sua filha, matando os gigantes.
     Entre os soldados, havia um capitão, que era homem muito feio e, além disso, caolho. Este adiantou-se e afirmou ser ele o autor da façanha. Declarou, então, o velho rei que, em pagamento do seu heroísmo, se casaria com a princesa. A moça, porém, disse, horrorizada:
    - Meu pai, em vez de casar com esse homem, prefiro sair a vagar pelo mundo até onde as pernas puderem aguentar.
   A  moça tirou seus vestidos luxuoso, foi à casa do oleiro e lhe pediu, a crédito, certa quantidade de objetos de barro, prometendo pagá-los naquela mesma noite, se conseguisse vender. O rei determinou que ela se instalasse em uma esquina e depois ordenou a alguns camponeses que passassem com suas carroças por cima de sua mercadoria e a reduzissem a cacos. E, assim, quando a  princesa estava expondo seus artigos na rua, chegaram as carroças e reduziram tudo a mil pedaços. A jovem rompeu em prantos, exclamando:
     - Meu Deus, como pagarei, agora , ao oleiro?
     O rei mandara fazer aquilo tudo para obrigar sua filha a aceitar o capitão. Em vez disso, a princesa procurou, de novo, o dono da mercadoria e pediu que lhe fiasse outra partida. O homem negou-se, dizendo que pagasse, antes, a primeira. A moça recorreu, então, a seu pai, e, entre gritos e lágrimas, disse-lhe que queria sair pelo, mundo afora. Respondeu-lhe o rei:
    - Mandarei construir para ti uma casinha na floresta e nela passarás a tua vida cozinhando  para todos os viajante, mas sem aceitar dinheiro de ninguém.
    Pronta a casinha, penduraram à porta uma tabuleta, onde se lia: " Hoje grátis, amanhã pagando."
    Por muito tempo a princesa viveu ali e correu a notícia de que na floresta vivia uma linda moça que cozinhava de graça, segundo anunciava uma tabuleta pendurada à porta. A coisa chegou aos ouvidos do nosso caçador, que pensou: "  Isso me convém, pois sou pobre, não tenho dinheiro."
    Apanhou a espingarda e a mochila onde continuava guardando o que levara do palácio e encaminhou-se para o bosque. Não tardou em descobrir a casinha com letreiro: "Hoje grátis, amanhã pagando." Levava à cintura o sabre com que cortara a cabeça dos gigantes e assim entrou na casa e pediu a comida. Ficou encantando com o aspecto da moça, que era mesmo muito linda, e quando ela lhe perguntou de onde vinha e para onde ia, respondeu-lhe o caçador.
      - Ando viajando pelo mundo.
       A moça, depois, indagou de onde tirara aquele sabre que tinha gravado o nome de seu pai, e o caçador, por sua vez, quis saber se era a filha do rei.
     - Sim, - confirmou a princesa.
     - Pois com  este sabre - falou, então, o caçador- cortei a cabeça a três gigantes - e, como prova, tirou da mochila as três línguas; depois mostrou-lhe o chinelo, o canto do lenço e o pedaço da camisa. Diante disso, a princesinha, louca de alegria, disse-lhe que era ele o seu salvador. Juntos foram ao palácio do velho rei, onde ela contou ao pai que o caçador era o homem que a salvara dos gigantes. O rei quando viu as provas, não pode mais duvidar e, depois de saber como tudo havia acontecido, disse muito se alegrava e que concedia ao jovem a mão de sua filha. A princesa então, mandou que o vestissem como se fosse um nobre estrangeiro e o rei organizou um banquete, Na mesa dispuseram os lugares de modo que o capitão ficasse à esquerda da princesa e o caçador à sua direita. O homem estava convencido de que se tratava de algum forasteiro que viera em visita ao palácio.
    Depois de terem comido e bebido, o velho rei disse ao capitão que queria apresentar-lhe um caso para resolver, Se um indivíduo, que afirmava haver dado morte a três gigantes, tivesse de declarar onde estavam as línguas de suas vítimas, que diria ao verificar que não se encontravam nas respectivas bocas? Respondeu-lhe o capitão:
    - Pois, de certo, não tinham línguas.
    - Isso não é possível, - replicou o rei. - Até os animais tem língua.
     Depois, perguntou-lhe o que merecia aquele que o enganasse. E a isso o capitão retrucou:
    - Merece ser esquartejado!
Disse, então, o rei, que acabava de pronunciar, ele mesmo, a sua sentença e, assim, o homem foi detido e logo esquartejado, enquanto a princesa se casava com o caçador. Este mandou vir seus pais, que viveram felizes ao lado do filho. Após a morte do rei, o jovem herdou o reinado inteiro. FIM

     

quinta-feira, 19 de maio de 2016

O ALFAIATE INTELIGENTE - CONTOS DE GRIMM

    Era uma vez uma princesa muito orgulhosa. Quando lhe aparecia algum pretendente, dava-lhe um enigma para adivinhar e, se o coitado não acertasse, mandava-o embora, enquanto ela ria, divertida. Fizera apregoar que se casaria com aquele que descobrisse a primeira adivinha que ela apresentasse, fosse ele quem fosse.
     Um dia, três alfaiates se reuniram para ir ao palácio. Os dois mais velhos diziam que, tendo já acertado na sua profissão, tantos pontos difíceis, haveriam, também de acertar o problema. O terceiro, entretanto, era um cabeça de vento que não servia para nada; nem ao menos entendia de sua profissão. Confiava, porém, na sorte. Pois em que outra coisa poderia, mesmo, confiar?
     - Será melhor que fiques em casa, - disseram-lhe os outros dois. - Não arranjarás nada com a tua patetice.
    Mas o alfaiatezinho não se deixou perturbar e respondeu que metera na cabeça tentar a sorte e que , de qualquer modo, se arranjaria. partiu com ele, somo se o mundo inteiro lhe pertencesse.
  Os três se apresentaram à princesa e pediram que  lhe desse seu enigma. Disseram-lhe ser os homens indicados, de fina inteligência, tão fina que era capaz até de passar pelo buraco de uma agulha.
      A princesa, então, lhes disse:
     - Esta linda coifa sempre me cobre todo o penteado. Mas, para ajudar a vocês, adianto que tenho, na cabeça, cabelo de duas cores. Quais são elas?
      - Se é isso, - respondeu o primeiro, - digo que é preto e branco como o pano a que chamam sal e pimenta.
       - Não acertaste, - retrucou a princesa. - Que adivinhe o segundo.
       - Se não é preto e branco, - disse o outro, - deve ser castanho e vermelho como o traje de festas de meu pai.
     - Muito menos! -  exclamou a princesa. - Que responda o terceiro. Este, sim, tem jeito de quem sabe..
       Adiantando-se corajosamente, disse-lhe o alfaiatezinho:
      - A princesa tem o cabelo de prata e de ouro; e estas são as duas cores.
      Quando a princesa ouviu estas palavras, empalideceu e quase desmaiou, pois seus cabelos  eram de um loiro prateado, coisa tão linda mas tão rara que era difícil de adivinhar.
     Refazendo-se do choque, ela disse:
    - Ainda não venceste, pois terás de fazer outra coisa. Embaixo, no estábulo, há um urso. passarás a noite com ele e se amanhã, quando eu me levantar, ainda estiveres vivo, eu me casarei contigo.
     Desse modo pensava livrar-se do alfaiate, pois ainda ninguém dos que tinham caído nas garras do urso havia saído delas com vida. O nosso homenzinho, porém, não se amedrontou e disse alegremente:
     - Quem não arrisca, não petisca!
     Ao anoitecer, o alfaiatezinho foi conduzido ao estábulo do urso. O animal, imediatamente, quis atacá-lo, para dar-lhe as boas-vindas com as suas garras.
     - Devagar, devagar! - exclamou o alfaiate. - Logo te acalmarei!
     E muito tranquilamente, como se nada o preocupasse, tirou do bolso umas nozes, que partiu com os dentes e começou a comer. Vendo isso, o urso também ficou com vontade de comer nozes e o alfaiatezinho enfiou a mão no bolso e lhe ofereceu um punhado; só que não eram nozes e sim pedrinhas. O urso as meteu na boca e, por mais que mastigasse, não pode quebrá-las. "Ora essa!" - pensou - "Que tipo mais desajeitado sou eu que nem ao menos consigo quebrar umas nozes!" e, dirigindo-se ao alfaiate, disse:
     - Quebra essas nozes para mim.
     - Por aí podes ver como és formidável! - respondeu o alfaiatezinho. - Tens uma boca tão grande e nem ao menos és capaz de partir uma noz.
     Apanhou as pedras e, trocando-as com agilidade, meteu uma noz na boca e: " craque! " estava partida.
     - Vou tentar de novo, - disse o urso. - Se tu és capaz de quebrá-la, é claro que eu também sou.-----
     Mas o alfaiatezinho tornou a dar-lhe as pedras e o urso se pôs a trincá-las com toda a força que tinha. Vocês podem acreditar: não se saiu nada bem!
      Deixaram daquilo e então o alfaiatezinho tirou um violino debaixo do casaco e começou a tocar uma bonita melodia. O urso, ao ouvir a música, não resistiu, pôs-se a dançar e achou a coisa tão divertida que perguntou:
     - Escuta! É muito difícil tocar violino?
     - Facílimo! Olha bem. Ponho aqui os dedos da mão esquerda e, com a direita, passo o arco pelas cordas. Repara como é divertido: tralalá...tralalá...
     - Pois gostaria de tocar assim violino para dançar quando tivesse vontade...- disse o urso. - Que dizes a isso? Queres ensinar-,me?
      - Com todo prazer. - retrucou o alfaiatezinho - se mostrares jeito para a coisa. Mas deixa-me ver essas garras. Hum! São muito compridas. Vou ter de cortar-te as unhas.
       Arranjaram um torno de carpinteiro e o urso pôs nele as garras. O alfaiatezinho as atarraxou bem depois disse:
     - Agora espera que eu vou buscar a tesoura.
      Deixou que o urso grunhisse à vontade e foi deitar-se num canto, sobre um monte de palha, onde adormeceu.
      A princesa, ouvindo, durante a noite, os grunhidos do urso, acreditou que ele havia feito picadinho do alfaiate e estava gritando de alegria. Na manhã seguinte levantou-se tranquila e contente, mas, ao ir dar uma olhada no estábulo, encontrou nosso homenzinho alegre e saudável como peixe na água. Já não pode, e então, continuar negando-se, pois havia feito  a promessa publicamente e o rei mandou vir uma carruagem em que o alfaiate foi conduzido com ela à igreja para se casarem. Enquanto isso, os dois outros alfaiates, que tinham um coração mau e invejavam a sorte de seu companheiro, desceram ao estábulo e puseram  urso em liberdade. Este, enfurecido, lançou-se em perseguição da carruagem . A princesa, ao ouvi-lo grunhir e resfolegar, teve medo e exclamou:
        - Ai! O urso nos persegue e vem te pegar!
       Mas o alfaiatezinho, com muita agilidade, pôs as pernas fora da janelinha e gritou:
       - Estás vendo este torno? Se não te retirares logo, serás novamente atarraxado a ele.
        O urso, ouvindo aquilo, deu volta e deitou a correr. Nosso homenzinho entrou, calmamente, na igreja, onde o casaram com a princesa e junto a ela viveu alegre e feliz como os pássaros. E quem quiser acreditar, paga prenda.
     FIM

sexta-feira, 13 de maio de 2016

OS DOIS ANDARILHOS - CONTOS DE GRIMM

       Os vales e as montanhas nunca se encontraram, mas apenas os homens, especialmente os bons com os maus. Assim sucedeu que, certa vez, um sapateiro e um alfaiate que haviam saído a correr mundo, se encontraram . O alfaiate era baixinho, simpático, sempre alegre e bem disposto. Ao ver o sapateiro, que se aproximava, vindo de direção oposta e percebendo-lhe o ofício pela sacola que carregava, gritou-lhe estes versinhos zombeteiros:
       Sapateiro, não amola!
        Bota fora a presunção!
        Bata sola, bate sola,
        Faz a tua obrigação!

    Mas o sapateiro não gostava de brincadeiras e, franzindo a cara como se tivesse tomado vinagre, fez o gesto de quem ia esgoelar o outro. O alfaiatezinho, no entanto, começou a rir e, alcançando-lhe sua garrafa de vinho, disse:
    - Não leves a mal. Bebe um pouco que te passará esse mau humor.
    O sapateiro tomou um bom gole e seu rosto começou a desanuviar-se. Devolvendo a garrafa ao alfaiate, disse-lhe:
     - Prestei boa homenagem ao vinho. Fala-se muito dos que bebem, mas não dos que tem sede. que achas da ideia de seguirmos juntos?
     - Estou de acordo, - respondeu-lhe o alfaiate,- desde que queiras ir a uma cidade grande, onde não falte trabalho.
     - Era essa, exatamente, a minha vontade, - retrucou o sapateiro. - Num lugarejo qualquer não se ganha nada e, no campo, as pessoas preferem andar descalças.
     Assim, prosseguiram juntos seu caminho, sempre em frente, um pé adiante do outro, que o mundo é coisa grande para quem sabe andar.
     Tempo, eles tinham de sobra, mas pouca coisa para mastigar. Sempre que chegavam a uma cidade, cada um ia para o seu lado a cumprimentar os mestres de seus respectivos ofícios. O alfaiatezinho, com seu gênio alegre, seu ar saudável, suas bochechas coradas, era bem acolhido em toda parte e todos lhe davam alguma coisa, e até às vezes tinha a sorte de ganhar uma beijoca da filha do mestre, atrás da porta. Quando se encontrava, de novo, com  o sapateiro, sua mochila sempre estava mais cheia que a do outro, O sapateiro, com seu ar rabugento, fazia uma cara feia e comentava:
    - Quanto mais velhaco, mais sorte!
     Mas o alfaiate se punha a rir e a cantar e repartia com seu companheiro tudo o que lhe haviam dado. Se acontecia tilintarem alguma moedas em seu bolso, ele as gastava na taverna e, de tão contente, batia com o punho na mesa, estremecendo os copos. Fazia como diz  o povo: " Fácil de ganhar, fácil de gastar."
     Já tinham viajado juntos por algum tempo, quando chegaram, um dia, a uma floresta muito grande por onde passava o caminho da capital do reino. Tinham de escolher duas estradas: uma que se percorria em sete dias e ao outra em apenas dois. Mas eles não sabiam qual era a mais curta, Os dois andarilhos sentaram-se à sombra de um cavalho para discutir o caso e resolver para quantos dias deveriam levar pão. Disse o sapateiro:
        É melhor gemer de peso que de necessidade. Eu vou levar pão para sete dias.
      O que?! - exclamou o alfaiate. - Carregar, que nem burro, pão no lombo para sete dias, sem poder ao menos virar a cabeça, para dar uma olhada no caminho? Tenho fé em Deus e não me preocupo. O dinheiro que tenho no bolso vale o mesmo, tanto no verão como no inverno, mas o pão, com este calor, ficará seco e ainda por cima vai embolar. Por que fazer a manga mais comprida que o braço? Por que não iríamos dar no caminho certo? Pão para dois dias, e nada mais!
       E, assim, cada qual comprou sua quantidade de pão e embrenharam-se na floresta, contando com a sorte.
      No interior da mata havia um silêncio grande como numa igreja. Não corria uma brisa; não se ouvia o rumor de um arroio nem o gorjeio de um pássaro ao menos um raio de sol. O sapateiro não pronunciava uma só palavra, pois a grande carga de pão lhe pesava tanto nos ombros que os suor corria como água pelo seu rosto carrancudo e feio. O alfaiate, porém, caminhava alegremente, pulando e tocando numa folha enrolada, como se fosse uma flauta ou, então, cantava, enquanto ia pensando: "Deus Nosso Senhor deve estar contente por me ver tão alegre."
       Durante dois dias as coisas continuaram assim. Mas quando, ao fim do terceiro, o alfaiate viu que não chegavam ao fim da floresta e que ele já tinha comido toda a sua parte, sentiu um baque no coração. Mesmo assim, não perdeu a coragem: tinha confiança em Deus e na sua boa sorte. Naquela noite deitou-se, faminto, ao pé de uma árvore e, na manhã seguinte, despertou com mais  fome ainda. Assim passou também o quarto dia e, quando o sapateiro se sentava no tronco de alguma árvore  para fazer sua refeição, a única coisa que restava ao alfaiate era ficar olhando, olhando...Se lhe pedia um pedacinho de pão, o outro ria e lhe retrucava:
      - Sempre foste tão alegre! Pois fica sabendo agora o que é a tristeza...Os passarinhos que cantam de madrugada são comidos , à noite, pelo gavião.
       - Hoje te darei um pedacinho de pão, mas, em troca, vou tirar-te o olho direito.
       O infeliz alfaiate, desejoso de viver mais um pouco não teve outro remédio senão concordar. Chorou, pela ultima vez, com os dois olhos e depois ofereceu-se ao sapateiro, que tinha um coração de pedra e que lhe tirou, com uma faca bem afiada, o direito.
      O alfaiate, então, lembrou-se do que a mãe sempre lhe dizia quando o encontrava a empanturrar-se de doces na despensa: " Come, come, mas depois aguente as consequências!" Assim, pode ter devorado o pão que lhe saíra caro, ele conseguiu pôr-se novamente de pé. E esquecendo sua desgraça, procurou consolar-se com a ideia de que com um olho só ainda enxergava o bastante. Mas no sexto dia, voltou a atormentá-lo a fome que o fazia desfalecer. À noite, caiu junto a uma árvore e, na manhã do sétimo dia, não conseguiu mais erguer-se e sentiu que a morte se aproximava. Disse-lhe, então, o sapateiro:
      - Vou ser camarada contigo e te darei outro pão. Mas não o terás de graça. Em troca, vou tirar-te o outro olho.
      Diante disso, o alfaiate reconheceu sua conduta leviana e, pedindo perdão a Deus, disse ao seu companheiro:
     - Seja o que bem quiseres! Tenho de sofrer as consequências da minha imprevidência. Não te esqueças, porém que Deus Nosso Senhor julga quando menos se espera. Chegará a hora em que terás de prestar contas do que fazes, exatamente a mim, que, durante os dias bons, reparti contigo tudo o que possuía. Para exercer minha profissão é necessário que um ponto siga o outro; uma vez que eu tiver perdido a vista, não poderei mais costurar e não me restará outro recurso senão esmolar o meu pão. Só te peço que, quando cego, não me abandones neste lugar, onde morreria de fome.
      O sapateiro, que já não tinha lugar para Deus no seu coração, pegou  faca e lhe tirou o outro olho. Feito isso, deu-lhe um pão para comer, alcançou-lhe um bastão e deixou que o alfaiate o seguisse.
      Quando o sol ia desaparecer, os dois saíram da floresta. No campo em frente, e erguia-se uma forca. O sapateiro guiou o alfaiate até ali e depois o abandonou, seguindo ele seu caminho. O infeliz adormeceu de cansaço, de dor e fome. Ao despontar do dia, acordou sem saber onde  se encontrava. Da forca pendiam os corpos de dois pobres pecadores e sobre a cabeça de cada um deles estava pousado um corvo. De repente, um dos enforcados começou a falar. Disse, dirigindo-se ao outro:
       - Irmão, estás acordado?
       - Sim - respondeu o companheiro.
       - Pois então vou te dizer uma coisa, - prosseguiu o primeiro, - o orvalho que esta noite caiu em cima de nós, eu sei que tem um poder mágico: devolve a vista a quem se lavar com ele. Ah! se os cegos soubessem disso...
      Ao ouvir aquelas palavra, o alfaiate pegou o lenço, molhou-o no orvalho que havia sobre o capim e lavou com ele as cavidades dos olhos. No mesmo instante, aconteceu o que acabara de dizer o enforcado e um par de olhos sãos nasceu-lhe no lugar onde só havia os buracos. Pouco depois, o alfaiate viu o sol nascer atrás das montanha e, à sua frente, na planície, a cidade, com seus magníficos portões e centenas de torres encimadas por cruzes de ouro que brilhavam à distância. Pode distinguir cada folha  nas árvores. Pode ver os pássaros que passavam voando. E até os pequenos insetos que dançavam no ar. Tirou do bolso uma agulha e viu - ó milagre! - que podia enfiá-la melhor do que antes. Caiu de joelhos, agradecendo a Deus a graça obtida e rezou sua oração da manhã, sem esquecer de encomendar a Nosso Senhor as almas dos dois pobres pecadores ali enforcados e que o vento fazia bater um contra o outro. Em seguida, pôs aos ombros a mochila e, esquecendo as penas passadas, retomou o caminho, cantando e assobiando.
        Eis senão, quando, avistou um lindo potro tordilho, que saltava alegremente pelo campo. Agarrando-o pela crina, quis montar nele para entrar a cavalo na cidade. Mas o animal rogou-lhe que não privasse de sua liberdade:
      - Sou demasiado jovem, - disse, - e, mesmo um alfaiatezinho leve como tu, me quebraria a espinha. Deixa-me correr livremente pelos campos até que esteja mais forte. Talvez chegue o dia em que eu  possa pagar-te.
       - Pois sai correndo, - disse -lhe o alfaiate. - Bem vejo que és, também, um maluquinho.
        Deu-lhe um golpe de leve no lombo, com a vara, e o animalzinho saiu a galopar, alegre, pelo campo, saltando cercas e valas.
      O alfaiate não havia comido nada desde a véspera.
      - É verdade que o sol me enche os olhos, - dizia,- mas agora preciso de alguma coisa que me encha a boca. O que eu primeiro encontre para comer, não deixarei escapar!
     Nisto, viu uma cegonha que andava, muito sim-senhora, pelo campo.
     - Alto, alto! - gritou o alfaiate, pegando-a pela perna. - Não sei se és uma boa comida, mas minha fome não me permite escolha. Tenho de torcer-te o pescoço e transformar-te num assado.
       - Não faças isso! - respondeu a cegonha. - Sou uma santa ave que não faz mal a ninguém e que traz grande benefício à humanidade. Se me poupas a vida, talvez um dia eu possa pagar-te.
        - Pois, então, vai andando, perna-fina! - disse o alfaiate. E a cegonha, alcançando voo, afastou-se tranquilamente.
      - Que farei agora? - perguntou o alfaiate a si mesmo. - Minha fome cresce como um balão e tenho o estômago cada vez mais vazio. O primeiro que cruzar o meu caminho estará perdido.
      Nisto, olhou para um lago e viu dois patinhos nadando.
      - Vocês vem muito a propósito! - disse ele. E, agarrando um dos bichinhos, dispôs-se a torcer-lhe o pescoço. Naquele momento, uma pata velha, que estava metida entre os juncos, pôs-se a grasnar e, aproximando-se, a nado, lhe implorou que tivesse pena dos seus filhinhos.
      - Não pensas - falou - no que sentiria tua mãe se alguém viesse para te comer?
      - Tranquiliza-te, respondeu-lhe o bondoso alfaiate. - Fica com teus filhos. - E pôs na água o patinho que havia apanhado.
        Ao voltar-se, notou à sua frente uma velha árvore, meio oca, e muitas abelhas silvestres que entravam e saiam do tronco.
      - Finalmente recebo o prêmio pela minha boa ação, - disse, - este mel me confortará.
    Mas a rainha das abelhas apresentou-se, ameaçado-o:
     - Se tocas em meu povo e nos destróis o ninho, nossos ferrões se cravarão em teu corpo como dez mil agulhas de fogo. Em troca, se nos deixares em paz e seguires o teu caminho, nós te prestaremos um serviço quando menos esperares.
     O alfaiatezinho viu que  também por aquele lado não iria saciar sua fome.
      - Três pratos vazios. - disse consigo - e o quarto, sem coisa nenhuma; isto é que se chama fazer dieta!
     Arrastou-se até a cidade, sem nada no estômago. Mas, como chegasse justamente ao meio-dia e tivesse algumas moedas, pode afinal matar a fome. Depois, pensou: " Bem, agora é preciso trabalhar!"
      Percorrer a cidade em busca de um mestre- alfaiate e não tardou a encontrar um bom emprego. Como era muito hábil em seu ofício, em pouco tempo estava famoso. Todas as pessoas de importância queriam seus trajes confeccionados pelo alfaziatezinho, que era agora o rei da moda.
    - Não posso melhorar mais a minha arte, - dizia ele, - e, no entanto, cada dia as coisas vão melhorando.
      Tanto assim, que o rei o nomeou alfaiate da Corte.
     Mas vejam como são as coisas neste mundo: no mesmo dia  era nomeado sapateiro da Corte o seu velho companheiro de viagem. Este, ao ver   alfaiate e notando que havia recuperado os olhos, ficou muito preocupado. ! "Tenho de preparar-lhe uma cilada antes que ele se vingue de mim" - pensou. Mas aquele que faz uma armadilha para outrem, acaba caindo nela.
      Certa ocasião, ao anoitecer, depois de terminar o trabalho, o sapateiro apresentou-se ao rei e lhe disse:
       - Majestade, o alfaiate é um sujeito atrevido, Ele anda a gabar-se de que seria capaz de encontrar a coroa de ouro que se perdeu há tanto tempo.
      - Isso muito me agradaria, - respondeu o rei.
     Na manhã seguinte, chamou o alfaiate à sua presença e lhe disse que das duas uma: ou fizesse aparecer a coroa ou então deixasse a cidade para sempre. " Bem, - pensou o alfaiatezinho, - só um tolo dá mais do que tem. Se o rei exige de mim o que ninguém pode fazer, é melhor que eu nem espere o dia de amanhã e saia da cidade hoje mesmo." Arrumou sua mochila. E, quando ia atravessando as portas da cidade, sentiu uma grande tristeza por ter de renunciar à sua boa sorte, a abandonando os lugares onde passara tão belos dias. Chegou ao lago onde tinha os patos. Ali estava a pata velha, limpando as penas com o bico. Ela o reconheceu logo e lhe perguntou por que andava tão acabrunhado.
       - Não te espantarás quando souberes  o motivo, - respondeu o alfaiate e contou-lhe o seu azar.
        - Se é só isso, - disse a pata, - poderemos ajudar-te. A coroa caiu na água e está no fundo do lago. Logo a traremos à tona. Estende o teu lenço no chão, junto à margem.
        E, junto com os seus doze patinhos, mergulhou para reaparecer dali a cinco minutos com a coroa no lombo, rodeada dos doze pequerruchos que, nadando a seu redor, ajudavam-na  a carregar a coroa com os bicos. Nadaram até a margem e depositaram a coroa sobre o lenço. Não podem imaginar como ela era inda! Quando os raios de sol a atingiam, cintilava como cem mil brilhantes. O alfaiate atou o lenço pelas quatro pontas e levou a coroa ao rei. Este, contentíssimo, condecorou ele mesmo ao alfaiate, com um belo colar de ouro.
        Quando o sapateiro viu que seu plano havia falhado, pensou noutro e, dirigindo-se ao rei, disse:
       - Majestade, o alfaiate continua muito atrevido. Ele anda a gabar-se de que pode reproduzir em cera todo o palácio real, com todos os pertences, por dentro e por fora.
       O rei mandou chamar o alfaiate e ordenou-lhe que reproduzisse em cera o palácio, com tudo o que dele fizesse parte, exatamente , tanto no interior como no exterior. Mas avisou-o de que, se não fosse capaz disso e se faltasse um só prego na parede, seria lançado a um calabouço para o resto da vida. Pensou o alfaiate: " As coisas estão piorando cada vez mais; isso ninguém aguenta." E, pondo a mochila aos ombros, saiu pela estrada. Quando chegou à árvore oca, sentou-se embaixo para descansar, triste e aborrecido. As abelhas saíram voando e a rainha lhe perguntou se estava sentindo alguma dor, pois nem levantava a cabeça.-------------------------------------
         - Oh, não! - respondeu o alfaiate, - a minha dor é outra.
         E contou o que o rei havia exigido dele. puseram-se as abelhas a zumbir entre si e depois a rainha lhe disse:
        - Volta para casa e amanhã, a esta mesma hora, vem aqui, trazendo um pano bem grande, que tudo saíra bem.
           Enquanto ele regressava à cidade, as abelhas voaram até o palácio real e, entrando pelas janelas, meteram-se por todos os cantos, observando tudo em seus menores detalhes. Feito isso, de volta à colmeia, fizeram uma reprodução, em cera, do palácio, e isto com uma rapidez que vocês nem podem imaginar. À noite o trabalho estava concluído. E quando, na manhã seguinte, o alfaiate se apresentou, conforme o combinado, viu ali o magnífico palácio, sem que faltasse um prego na parede nem uma telha no telhado. Além disso, era delicado como um bolo de noiva, branco como a neve e desprendia o cheiro suave de mel. o alfaiate o arrumou, cuidadosamente, dentro do pano que trouxera  e o levou ao rei. Este não soube como expressar sua admiração. mandou que o colocassem no salão mais espaçosos do palácio. E presentou o alfaiate com uma casa muito grande e muito bonita.
           O sapateiro, porém, não desistiu e pela terceira vez foi ao rei, dizendo:
          - Majestade, o alfaiate bem sabe que no pátio do palácio não há meios de fazer brotar água. Mas ele anda a gabar-se de que é capaz de fazê-la jorrar no centro do pátio, em um esguicho da altura de um homem, e límpida como um cristal.
          O rei ordenou que se apresentasse o alfaiate e lhe disse:
        - Se amanhã não jorrar um esguicho de água no pátio, conforme prometeste, mandarei que o carrasco te corte a cabeça ali mesmo.
         O pobre alfaiatezinho não se demorou em  pensar muito tempo no assunto. Apressou-se a sair da cidade e, como desta vez não se tratava de expulsão nem de prisão, mas de sua própria vida, as lágrimas lhe rolavam pelas faces. Enquanto caminhava, cheio de tristeza, aproximou-se dele, saltando, o antigo potro a quem um dia ele concedera a liberdade e que, já crescido, era agora um belo e forte animal.
        - Chegou a hora, - disse ele, - em que poderei pagar tua boa ação. Já sei o  se  que passa  e logo te ajudarei. Monta em mim, pois agora posso carregar dois como tu.
         O alfaiate criou alma nova e saltou para o lombo do animal, que entrou a galope na cidade, dirigindo-se, diretamente, ao pátio do palácio. Ali deu três voltas completas com a velocidade do raio e, por fim, deixou-se cair no chão. no mesmo instante ouviu-se um tremendo estalo. Do centro do pátio, saltou um pedaço de terra. Elevou-se um jato de água até a altura de um homem a cavalo. E a água era límpida como um cristal e os raios dos sol dançavam em suas gotas. Quando o rei viu esse maravilhoso espetáculo, levantou-se cheio de da admiração e foi ele mesmo abraçar o alfaiatezinho, na presença de toda a Corte.
        A felicidade, porém, durou pouco. O rei tinha várias filhas, cada qual mais linda, mas nenhum filho homem. E, pela quarta vez, o sapateiro maldoso foi ao rei e falou:
      - Majestade, o alfaiate continua cada vez mais atrevido. Ele anda agora a gabar-se de que será capaz de fazer com que tragam, pelos ares, um filho para a rainha.
      Novamente o rei mandou chamar o alfaiate e lhe disse:
      - Se, dentro de nove dias, fizeres com que me tragam um herdeiro menino, eu te darei minha filha mais velha em casamento.
      "Realmente, a recompensa é grande" - pensou o alfaiatezinho, - " e vale a pena fazer um esforço. mas, quando a esmola é demais, o pobre desconfia."
       Foi para casa; instalou-se de pernas cruzadas sobre a sua mesa de trabalho e pôs-se a refletir no assunto. "Não é possível!" - acabou exclamando, - " eu me vou embora para sempre; aqui não poderei viver em paz".
         Arrumou a mochila e apressou-se a sair da cidade. Quando chegou ao campo, avistou sua velha amiga, a cegonha, que passeava, filosofando, de um lado para outro, e que de vez em quando parava para examinar uma rã, que ela acabava engolindo mesmo. A cegonha aproximou-se e saudou-o.
        - Vejo - começou a falar - que tens a mochila às costa. por que pretendes sair da cidade?
      O alfaiate contou o que o rei lhe havia exigido e que lhe era impossível satisfazê-lo.
       - Não vás criar cabelo branco por tão pouco,- disse a cegonha. - Eu te ajudarei. - Há muito tempo que trago bebes para a cidade e não me custa tirar do poço um pequeno príncipe. Vai para casa descansado. Daqui a nove dias apresenta-te no palácio, que lá estarei também.
        O alfaiatezinho voltou para casa e no dia combinado foi ao palácio. Não demorou muito, apresentou-se a cegonha e bateu à janela. O alfaiate abriu e a senhora cegonha entrou, com todo o cuidado caminhando solenemente sobre o mármore liso. Trazia no bico um menininho, lindo com um anjo, que estendia as mãos para a rainha. Depositou o nenê no seu colo e ela pôs-se a beijá-la, doida de alegria. Antes de afastar-se. a cegonha tirou seu saco de viagem e o alcançou à rainha. Dentro havia balas e doces diversos que foram distribuídos entre as princesinhas. Só a mais velha nada recebeu. Já era muito grande para ganhar doces. Deram-lhe, em vez disso, o alegre alfaiate para esposo. " Sinto-me como se houvesse tirado a sorte grande. Minha mãe sempre dizia que, quem confia em Deus e tem sorte, nada lhe faltará."
      O sapateiro foi obrigado a fazer os sapatos que o nosso alfaiatezinho usaria no baile de casamento. Depois, ordenaram-lhe que abandonasse a cidade. O caminho para o mato passava pela forca. Abafado pelo calor e com a alma cheia de ódio, deitou-se ali. Quando ia fechar as pálpebras para dormir um pouco, os dois corvos que estavam pousados na cabeça dos enforcados atiraram-se, grasnando, sobre ele e lhe arrancaram seus dois olhos. Louco de dor, levantou-se e entrou correndo na floresta, onde decerto morreu ao desamparo, pois nunca mais se viu ou ouviu coisa alguma a seu respeito. FIM
   

terça-feira, 10 de maio de 2016

GENTE SABIDA - CONTOS DE GRIMM

    Um dia, certo camponês tirou do lugar seu bastão e disse à mulher:
     -Vou viajar e só volto daqui a três dias, Se, nesse meio tempo, vier o tropeiro e quiser comprar nossas três vacas, poderás vendê-las por duzentos moedas. Mas nem um tostão a menos, entendeste?
     -Vai com Deus! - respondeu a mulher. - Farei tal e qual tu disseste.
     - Sim, bem te conheço! - comentou o homem. - Quando criança, caíste de ponta-cabeça no chão e o resultado ainda está se vendo até hoje... Mas uma coisa te digo: se fizeres bobagens, eu te pinto o lombo de azul, e não com tinta e pincel, mas com este bastão aqui: e te garanto que essa pintura não desaparecerá antes de um ano.
    Dito isto, o homem se pôs a caminho.
    Na manhã seguinte, apresentou-se o tropeiro e a mulher não precisou falar muito. Depois de examinar as vacas e saber o preço, disse:
    - Estou disposto a pagar o que pedes, que elas bem valem isso. Vou levar os animais agora mesmo.
    Soltou-os da correia e os tirou do estábulo; mas. quando ia saindo com eles pela porta da granja, a mulher, pegando-o pela manga do casaco, disse:
    - Terás que me dar primeiro as duzentas moedas; do contrário não poderás levar as vacas.
    - Tens toda razão, - respondeu o negociante.- Esqueci a minha bolsa em casa. Mas não te preocupes, que te darei uma boa garantia. levarei duas vacas e te deixarei a terceira em penhor; assim terás uma boa fiança.
     A mulher achou ótima a proposta e deixou que o negociante partisse com duas vacas. Ficou pensando: " Que contente não irá ficar o João quando souber que agi com tanta inteligência!"
    Três dias depois, o camponês regressou, como havia anunciado, e sua primeira pergunta foi a respeito da venda das vacas.
    - Sim, meu marido, - disse a mulher, - vendi-as  por duzentos moedas, como recomendaste. Mal valem isso, mas o homem as levou sem pechinchar.
     - Onde está o dinheiro?
     - O dinheiro ainda não recebi, porque o negociante havia se esquecido da bolsa; mas na certa vai trazê-lo sem demora, pois me deixou uma boa fiança.
      - Que fiança?
      - Uma das três vacas. Essa ele não levará antes de ter pago as outras duas. Fui inteligente e fiquei com a menorzinho, que é a que come menos.
      O homem ficou furioso e, levantando o bastão, preparou-se para dar-lhe a surra prometida. Mas, de repente, parou e disse:
      - És a criatura mais idiota que Deus pôs na terra; chegas até a me dar pena. Vou ficar esperando três dias na estrada para ver se encontro alguém ainda mais bobo do que tu. Se achar uma pessoa assim, ficarás livre da surra; caso contrário, receberás  a paga que te prometi sem o menor desconto.
       Saiu e sentou-se numa pedra à espera do que desse e viesse. Nisto viu aproximar-se uma carreta, onde estava uma mulher, de pé, em vez de ficar sentada no monte de palha ou ir ao lado dos bois, conduzindo-os. Pensou o homem: "Essa, pelo visto, é uma das que estou procurando." Levantou-se de um salto e se pôde a correr de um lado para outro, diante da carreta, como alguém que não fosse bem certo da cabeça.
     - Que há, compadre? - indagou a mulher. - De onde vens que não te conheço?
      - Caí do céu, - respondeu o homem - e não sei como voltar para lá. não poderias levar-me?
      - Não, - retrucou a mulher, - não sei o caminho. mas, se vens do céu, podes dar-me notícias do meu marido, que morreu há três anos. Com certeza o viste por lá.
      - Claro que o vi; mas nem todos levam ali uma boa vida. teu marido cuida das ovelhas e os bons animaizinhos lhe dão muito trabalho, trepando nas montanhas e se perdendo pelas matas. É obrigado a correr atrás delas para juntá-las. Além disso, sua roupas estão em farrapos e, mais dia menos dia, lhe cairão do corpo. Não há alfaiates no céu. São Pedro, como bem sabes pelo que dizem, não deixa entrar nenhum.
     - Quem imaginaria uma coisa dessas! - disse a mulher. - Sabes o que mais? Irei buscar seu traje de domingo, que ainda está guardado no armário e que ele lá poderá usar com muito orgulho. Podes fazer-me o favor de levá-lo?
    - Impossível! - retrucou o camponês. - é proibido levar trajes de domingo para o céu. Eles os tiram da pessoa antes de passar pela porta.
      - Escuta! - disse a mulher. - Ontem vendi meu trigo por uma boa quantia, que vou enviar a ele. se meteres o dinheiro no bolso, ninguém notará.
       - Se não há outro remédio, - respondeu o camponês, - estou disposto a fazer-te esse favor.
     - Então fica aí sentado, - disse ela- que vou em casa buscar a bolsa e não demoro a voltar. Estou de pé na carroça, em vez de sentar-me na palha, para que os bois não tenham de levar tanto peso.
     E pôs em marcha os animais, enquanto o camponês pensava: "Esta criatura é doida varrida e se, de fato, trouxer o dinheiro, minha mulher pode considerar-se muito feliz por se ter livrado da surra."
     Não demorou muito a camponesa voltou, correndo , e meteu o dinheiro, ela mesmo, no bolso do homem. Antes de se despedir, agradeceu-lhe muitas e muitas vezes por sua gentileza.
   Quando a boba mulher chegou, enfim, à sua casa, encontrou o filho que acabava de regressar do campo. Contou-lhe as coisas espantosas que lhe haviam acontecido e acrescentou:
     - Alegro-me tanto de haver encontrado uma oportunidade para enviar algo ao meu pobre marido! Quem havia de imaginar que, lá no céu, lhe faltasse alguma coisa?
     O filho ficou pasmo.
     - Meu Deus! - exclamou ele. - Isso de uma pessoa baixar do céu não acontece todos os dias. Sairei à procura desse homem. Gostaria de saber como andam de trabalho por lá.
    Encilhou o cavalo e partiu a toda pressa. Encontrou o camponês, à sombra de um salgueiro, a contar as suas moedas.
    - Não viste o homem que caiu do céu? - perguntou-lhe o rapaz.
     - Sim, - respondeu o camponês, - mas já está de volta para lá; tomou a estradinha que sobe aquela montanha e que encurta um pouco o caminho. Mas, se fores a galope, ainda poderás alcançá-lo.
      - Ah! - exclamou o rapaz.. - Estou cansado de trabalhar o dia todo e a cavalgada até aqui me deixou moído. mas tu conheces o homem; bem poderias montar o meu cavalo e ir atrás dele para convencê-lo de que volte aqui.
      "Hum! aqui está outro que não regula bem- pensou o camponês. E, dirigindo-se ao jovem assim lhe  disse:
     - É mesmo! Por que iria eu negar-te esse favor?
     Montou e saiu a todo galope. o rapaz ficou esperando até de noite, mas o camponês não voltou. "De certo- pensou ele- o homem do céu estava com pressa e não quis dar volta; e o bom do camponês lhe deu o cavalo para ser entregue a meu pai."
      Foi para casa e contou à mãe, muito satisfeito, que tinha enviado o cavalo ao pai, para que ele não precisasse andar a pé lá no céu.
     - Fizeste muito bem! - respondeu a mãe. - Tens boas pernas e não é necessário que andes a cavalo.
     Quando o camponês chegou em casa, pôs o animal na estrebaria junto com a vaca; depois foi para onde estrava a mulher e lhe disse:
     - Catarina, tiveste sorte! Encontrei dois ainda mais bobos que tu. por esta vez te livraste da surra, que fica adiada para a próxima ocasião.
      E, acendendo o cachimbo, sentou-se na cadeira de balanço. Depois prosseguiu:
    - Foi um bom negócio. por duas vacas magras, obtive um cavalo bem gordo e uma bolsa cheia de dinheiro. Se a burrice fosse tão proveitosa, eu teria o máximo respeito pelos burr
    Assim pensou o camponês, mas eu estou certo e que vocês hão de preferir as pessoas inteligentes.
     

sexta-feira, 6 de maio de 2016

O MINGAU DOCE - CONTOS DE GRIMM

  Era uma vez uma meninazinha bem comportada, mas muito pobre, que vivia com sua mãe. Chegaram a tal estado de pobreza que não tinham nada para comer. Um dia a menina foi ao bosque e lá encontrou uma velha que, sabendo da sua miséria, lhe deu uma panela de presente. Vocês acham pouco? Mas era só dizer: " Ferve, panelinha", para que ela se pusesse a cozinhar um gostoso mingau. E, quando a gente lhe dizia: " Para, panelinha!" , ela deixava de cozinhar.
    A meninazinha levou o presente para sua mãe e assim ficaram livres de passar fome, pois tinham sempre mingau doce à vontade.
    Certa ocasião em que a menina havia saído, sua mãe disse: " Ferve, panelinha" , e esta se pôs a cozinhar e a mulher comeu até fartar-se. Depois quis que a panela parasse de cozinhar. Mas a pobre da velha estava tão empanturrada de mingau  que não houve meio de se lembrar das palavras mágicas. De modo que a panela continuava cozinhando até que o mingau chegou à borda e caiu para fora. E assim, cozinhando, cozinhando, encheu toda a cozinha e a casa, e depois a casa ao lado e a rua, como se quisesse acabar com a fome de todo mundo. Até que ninguém mais sabia o que fazer e o desespero era grande.
    Quando já faltava só uma casa para ser inundada, a menina voltou e disse, apenas: " Para, panelinha", e a panela parou de cozinhar.
    Mas todos os que queriam entrar na cidade eram obrigados a abrir caminho comendo mingau! FIM

A AVÓ DO DIABO - CONTOS DE GRIMM

    Houve, certa vez, uma grande guerra. O rei tinha muitos soldados, mas como lhes pagava um soldo muito baixo, os homens não podiam viver dele. Um dia três soldados combinaram desertar.
   Disse um deles:
   - Se nos pegam, seremos enforcados. Que vamos fazer?
    Respondeu o segundo:
    - Estão vendo aquele campo, grande, de trigo? Se nos ocultarmos nele, ninguém nos encontrará. o exército não pode entrar ali e, de mais a mais, prossegue marcha amanhã.
     Meteram-se, pois, entre o trigal. As tropas, porém, não partiram e sim ficaram acampadas ao redor do campo, contrariando suas esperanças. Os desertores permaneceram ocultos durante dois dias e duas noites e, depois desse tempo, ficaram a ponto de morrer de fome. Se, no entanto, saíssem dali, sua morte seria certa.
      - De que nos serviu a fuga? - comentarem. - De qualquer maneira, morreremos miseravelmente.
      Nisto, apareceu no ar um dragão cuspindo fogo, que pousou junto a eles e perguntou por que se haviam escondido ali.
      - Somos soldados, - responderam, - e fugimos por causa do soldo que era pouco. Mas, se continuarmos aqui, morreremos de fome, e se sairmos, nos enforcarão.
      - Se quiserem servir-me durante 7 anos, - disse o dragão - eu os conduzirei através do exército, de modo que não sejam vistos por ninguém.
     - Não  nos resta outra escolha. Temos de aceitar, - responderam eles.
     O dragão apanhou os três com suas garras, levantou-os e, voando por cima do exército, foi depositá-lo no chão, a grande distância. Acontece que aquele dragão não era outro senão o diabo. Deu a eles um pequeno chicote e falou:
    - Quando fizerem estalar este chicotezinho, choverá tanto dinheiro quanto quiserem. Poderão viver como grandes senhores, manter cavalos e andar de carruagem. mas quando os sete anos tiverem passado, vocês serão meus.
     Apresentou um livro, que abriu, e todos os três tiveram de por ali suas assinaturas.
    - Em todo caso - continuou, como quem não queria nada - eu darei um enigma para vocês adivinharem; se forem capazes de decifrá-los, ficarão livres e fora do meu poder.
     Em seguida o dragão afastou-se, voando, e os soldados partiram com o chicotezinho. Logo tiveram dinheiro à vontade; compraram roupas luxuosas e saíram a viajar pelo mundo. Em toda parte viviam alegres e satisfeitos. Tinham cavalos e carruagens, comiam e bebiam bem, mas nunca procediam mal. Os anos foram passando, rapidamente,e, quando o prazo foi chegando ao fim, dois deles começaram a ficar com medo. O terceiro, porém, não se afligiu, dizendo:
      - Não tenham medo, irmãos. Não sou tolo e adivinharei o enigma.
       Saíram para o campo, onde se sentaram, um deles muito senhor de si e os outros com suas caras  aborrecidas, De repente veio uma velha e perguntou qual o motivo de sua tristeza.
   - Ora, para que contar? De qualquer maneira, não poderás ajudar-nos.
    - Quem sabe? - respondeu a velha. - Conte-me as suas mágoas.
     Disseram-lhe, então, que haviam sido criados do diabo pelo espaço de quase sete anos, recebendo dele grande quantidade de dinheiro. Em troca, ele os obrigara a assinar um compromisso de lhe entregarem suas lamas, caso não decifrassem um enigma que lhes ia apresentar.
     Disse, então, a velha:
    - Se quiserem que os ajude, um de vocês terá de ir ao bosque. Chegará a uma cabana de pedras, em ruínas. Entrando ali, encontrará ajuda.
     Os dois pessimistas pensaram: " Isso não nos salvará", e continuaram sentados.O terceiro, porém, sempre animado, pôs-se a caminho pelo bosque a dentro, até que achou a cabana de pedras. Em seu interior havia uma mulher mais velha que Matusalém. Era a avó do diabo. Ela perguntou de onde vinha e o que queria ali. O jovem contou tudo o que acontecera. Falou com tanto jeito que caiu na simpatia da velha. . Esta se compadeceu dele e lhe disse que iria ajudá-lo. Tirou uma pedra grande que fechava a entrada de um porão e ordenou-lhe:-----
     - Esconda-te aqui e poderás ouvir tudo o que falarmos. Só terás de ficar quieto, sem te moveres. Quando vier o dragão, perguntarei qual o enigma. A mim ele conta tudo. Presta atenção nas suas respostas.
      À meia-noite em ponto chegou voando o dragão e exigiu sua janta. A avó pôs a mesa e serviu-lhe boa comida e bebidas para deixa-lo de bom humor. Depois sentou-se também e comeram e beberam juntos. Durante a conversa a  velha perguntou como tinha passado o dia e quantas almas havia conquistado.
    - Hoje não tive sorte, - respondeu ele, mas há três soldados que não me escaparão.
     - Ah! Três soldados? - replicou a velha. - Os soldados não são bobos e ainda poderão passar-te a perna.
     O diabo, então, disse, com um risada:
    -  Mas esses já estão no papo! Vou dar-lhes um enigma que nunca poderão decifrar.
    - E que enigma é? - perguntou ela.
    - É este que eu vou dizer. Numa praia do Mar do Norte há um macaco morto: será o assado deles. E uma costela de baleia: a sua faca de prata. E um velho casco de cavalo: o seu cálice de vinho.
     Quando o diabo  foi para a cama dormir, a velha retirou a pedra, deixando sair o soldado.
     -Tomaste nota de tudo? - perguntou.
    - Sim, - respondeu ele. - Sei o suficiente e saberei agir.
     Em seguida saiu pela janela, sorrateiramente, e foi logo unir-se a seus amigos.
     Contou-lhes como o diabo fora enganado por sua avó e como ouvira de seus próprios lábios a solução do enigma. Os três ficaram tão alegres que apanharam o chicotezinho e o estalaram tanto que o dinheiro saltou e rolou por toda parte.
     No momento em que terminaram os sete anos, o diabo apresentou-se com seu livro, mostrou-lhes suas assinaturas e disse:
    - Agora levarei vocês para o inferno, onde os espera um banquete, Se forem capazes de adivinhar qual o assado que irão saborear ficarão livres e ainda lhes deixarei o chicotezinho.
     Respondeu o primeiro soldado:
    - Numa praia do Mar do Norte há um macaco morto. este deve ser o assado.
    O diabo irritou-se e fez: Hum! Hum!
     - E qual será a faca de vocês?
      - A costela de uma baleia será nossa faca de prata, - respondeu o segundo.
      O diabo fez uma careta e resmungou: Hum! Hum! Hum!
      A seguir dirigiu-se ao terceiro:
     - E sabem, também, qual será o cálice em que beberão o vinho?
     - Um velho casco de cavalo; esse será o nosso cálice.
     Ao ouvir isso, o diabo soltou um grito e saiu voando pelos ares. Havia perdido todo o poder sobre eles. Os soldados ficaram de posse do chicotezinho, com o que tiveram tanto dinheiro quanto desejavam.E assim viveram felizes pelo resto da vida. FIM
 

quinta-feira, 5 de maio de 2016

O TICO-TICO E O URSO - CONTOS DE GRIMM

    Certa vez, num belo dia de verão, um urso e um lobo saíram a passear pela floresta. ouvindo o canto de uma ave, o urso disse:
    - Irmão lobo, que pássaro é esse que canta bonito?
     - É o rei das aves, -disse o lobo, - diante dele temos de nos curvar.
     O passarinho era um tico-tico.
     - Sendo assim, - falou o urso - gostaria de ver o palácio real. Leva-me até lá.
     - Isso não é tão fácil assim, - respondeu-lhe o lobo. - Terás de esperar até que venha Sua Majestade a rainha.
    Pouco depois apareceu a a rainha, seguida do rei, trazendo no bico a comida para seus filhinhos.
     O urso teria gostado de ir logo atrás, mas o lobo segurou-o pelo braço e lhe disse:
    - Não; agora terás de esperar até que o senhor rei e a senhora rainha tenham saído.
    Tomaram nota do lugar onde estava o ninho e se afastaram. Mas o urso não se conformou com a espera. Queria ver, o quanto antes, o palácio real e, pouco depois, voltaram lá novamente. o rei e a rainha estavam fora e ele resolveu dar uma espiada no ninho. Viu lá entro uns cinco ou seis filhotes.
     - Ah! então é este o palácio real?! - exclamou o urso. - Mas que palácio mais à toa! E vocês também não são príncipes; não passam de uns embromadores!
     Quando os tico-tiquinhos ouviram aquilo, ficaram furiosos e gritaram:
    - Não, não somos nenhuns embromadores! Nossos pais são gente muito direita. Você vai nos pagar, seu urso mentiroso!
     O urso e o lobo deram volta, assustados, e foram sentar-se nas suas cavernas.
    Os pequenos tico-ticos, porém, continuaram gritando, fazendo uma algazarra dos diabos. Quando seus pais trouxeram a comida, eles declararam:
     - Não tocaremos nem numa perninha de môsca, estamos dispostos até a morrer de fome, enquanto não ficar provado se somos ou não uns embromadores. O urso esteve aqui e nos disse uma porção de desaforos.
     - Fiquem descansados, - disse o velho rei, - que eu vou tirar isso a limpo.
      Ele e a senhora rainha saíram voando até à entrada da caverna do urso e o rei gritou:
    - Velho resmungão! Por que insultaste meus filhos? Isso te saíra caro. vai dar numa guerra tremenda!
     E assim ficou declarada a guerra ao urso. E ele então chamou em seu auxílio todos os quadrúpedes: o boi, o burro, o veado, o tigre e todos os demais que andam de quatro pés por este mundo em fora. O tico- tico, por sua vez,convocou tudo o que voa. Não só os pássaros grandes e pequenos, mas também os mosquitos, marimbondos, abelhas e moscas tiveram de acudir.
    Quando chegou a data em que a guerra deveria começar, o tico-tico enviou seus espias para descobrir quem era o general comandante das tropas inimigas. O mosquito, que era o mais esperto, saiu pelo mato onde estavam reunidos os adversários e escondeu-se entre as folhagens da árvore a cuja sombra os inimigos discutiam os planos de guerra. Ali estava o urso, que chamou a raposa e lhe disse:
      - Raposa, tu és o mais esperto de todos os bichos. Quero que sejas o nosso general. É preciso que no guies durante a batalha.
       - Bem, - disse a raposa, - mas que senha combinaremos, para eu dar as ordens a vocês?
     Ninguém atinava com uma senha que o inimigo não pudesse descobrir. Aí a raposa continuou falando:
     - Tenho uma bela cauda  comprida e bem peluda, que se parece com um penacho vermelho. Se eu a  mantiver em pé, sera sinal de que tudo corre bem, e vocês deverão continuar avançando. Mas se eu abaixar a cauda, saiam disparando o mais depressa possível.
    Quando o mosquito ouviu aquela combinação, regressou voando e contou tudo, direitinho, ao tico-tico.
     Na madrugada em que seria travada a batalha, via-se, de longe, o exercito dos quadrúpedes correr em grande velocidade, fazendo um barulhão que estremecia a terra. O tico-tico, por sua parte, vinha pelo ar, à frente de seu exército, em tremenda algazarra; era um gritar  e um zumbir que dava medo. E os dois exércitos investiram com furor.
     Aí então o tico-tico enviou o marimbondo, com ordem de ficar embaixo do rabo da raposa e de picá-la com toda a força que tinha. Na primeira ferroada a raposa estremeceu e levantou uma perna. Mas resistiu, mantendo a cauda de em pé. A segunda picada a obrigou a abaixá-la um momento e, à terceira, não podendo mais aguentar a dor soltou um berro e meteu o rabo entre as pernas . Quando os animais viram o sinal, acreditaram que tudo estava perdido e começaram a fuga, procurando cada qual esconder-se em suas covas. E assim as aves ganharam a batalha.
     O senhor rei e a senhora rainha voaram, então, ao ninho dos seus filhotes e lhes disseram:
     - Alegrem-se, pequenos; comam e bebam à vontade. Ganhamos a guerra!
      Mas os filhotes replicaram:
    - Não comeremos até que o urso venha ao nosso ninho pedir desculpas e reconheça que não somos impostores.
      O tico-tico voou até a gruta do urso e gritou na entrada:
    - Urso resmungão, tens de ir até o ninho de meus filhos, pedir-lhes perdão e dizer que são crianças direitinhas; do contrário, teremos de quebrar todos esses teus ossos!
     O urso, assustado, apresou-se em ir apresentar desculpas. Só então os pequenos tico-ticos ficaram satisfeitos, comeram e beberam como nunca e ficaram festejando até uma hora em que as crianças já deviam estar deitadas.  FIM