Sobre a colina erguia-se um moinho de vento, de aspecto soberbo. E era mesmo soberbo!
- Não sou, absolutamente não sou orgulhoso - dizia ele - mas sou iluminado, tanto por dentro como por fora. Tenho o sol e a lua para o uso externo e também para o interno; além disso, disponho de velas de estearina, de lâmpadas de óleo e de velas de sebo. Posso dizer, pois, que sou esclarecido! Sou uma criatura dotada de raciocínio e tão bem- feita que dá gosto ver! Tenho no peito um bom esôfago; possuo lá em cima quatro dedos fixos junto da cabeça, logo abaixo do chapéu - ao passo que as aves tem apenas duas asas, que carregam às costas. Sou holandês de nascimento, como bem mostra o meu tipo: holandês, como o do Navio Fantasma, daqueles classificados entre os fenômenos sobrenaturais, ainda que eu seja perfeitamente natural. Tenho ao redor do estômago uma galeria, e , nas entranhas. peças de moradia: lá se alojam meus pensamentos. O meu pensamento mais forte, aquele que domina e manda ali, é chamado pelos outros " o homem do moinho" . Ele sabe o que quer e eleva-se muito alto, muito acima do farelo e da farinha. Tem porém, uma companheira, que se chama a "mãe", e faz as vezes de coração. E ela não anda sem tino nem destino, não: sabe também o que quer, sabe o pode fazer; é suave como a aragem e forte como a tempestade; é capaz de fazer uma coisa com brandura, e, ainda assim, realizar o que deseja. Ela é o meu senso brando, enquanto o pai é rígido. São dois, e todavia um único ser; por isso se chamam " minha cara metade." E eles tem gurizinhos, pensamentos novos, que podem também crescer. Os pequenos é que mantem tudo em ordem. Quando, há pouco tempo, em um momento de meditação, mandei que o pai e os rapazes me inspecionassem o esôfago e o vão do peito, para verificar o que acontecera por lá - alguma coisa cá dentro de mim não funcionava bem e a gente deve examinar-se a si própria - os guris fizeram um barulho tremendo, que até nem fica próprio a quem, como eu, mora em cima de um morro. A gente não deve esquecer de que está iluminada: a opinião é uma espécie de iluminação! Mas, como ia dizendo, os guris fizeram um barulho infernal. O caçula entrou-me até no chapéu, e, de tão contente de se ver lá, chegou a me fazer cócegas. Os pensamentos pequenos podem crescer, como me informaram; e lá por fora, pelo mundo, há também pensamentos, e nem todos proveem da minha estirpe, pois por mais que alongue a vista, não enxergo nenhum do meu tipo - ninguém, a não ser eu. Aquelas habitações sem asas, contudo, nas quais não se ouve o esôfago, também tem pensamentos que vêm aqui ter com os meus, e contratam casamento, como eles lá dizem...É esquisito, sim. Mas ora! há muita coisa esquisita: umas vêm cair aqui, outras sucedem mesmo em mim. Alguma coisa está mudada, na engrenagem do moinho. Parece que o pai, a cara metade, é que mudou: diria que ele tem agora um novo sentido, mais suave; uma companheira mais carinhosa, mais jovem, mais piedosa. É, todavia, a mesma, mas pelo efeito do tempo, talvez se houvesse tornado mais branda e mais devota. Evaporou-se o que nela havia de amargura e tudo está agora muito mais alegre na casa.
Vão-se os dias e outros vêm, sempre novos, trazendo claridade e alegria. E um dia virá, assim está dito e escrito, em que tudo se acabará para mim - embora não totalmente. Serei então demolido, mas me levantarei outra vez, novo e melhor; hei de cessar de viver, e, contudo, continuarei a existir. Ficando o mesmo, tornar-me-ei diferente. É difícil para mim compreender isso, por mais iluminado que seja - pelo sol, a lua, estearina, óleo e sebo! Minha velha construção de madeira e alvenaria há de ressurgir dos destroços.
Espero ficar com os velhos pensamentos, com o pai, a mãe, com grandes e pequenos - com a família, enfim. Pois a esse todo, que é uma só coisa, ainda que sejam muitas, chamo eu - associação total dos pensamentos. Assim é preciso; não posso fazer de outra maneira.
E também eu terei de ficar eu mesmo, com o esôfago no peito, as asas na cabeça e a galeria em torno do corpo. Senão. talvez nem me reconhecesse a mim mesmo. nem os outros tampouco me reconheceriam, nem diriam:
- Lá está o moinho do morro: tem um aspecto soberbo e entretanto não é orgulhoso.
Todas essas coisas foi o moinho quem disse. E disse muito mais, mas isso é o que havia de mais interessante.
Os dias vinham e se iam, e o último chegou, afinal. Foi quando o moinho se consumiu, todo em chamas. As labaredas subiam muito alto, saíam pelo teto, tornavam a entrar, e iam lambendo e engolindo traves e tábuas, acabando por devorar por tudo. O moinho caiu, e dele nada mais restou senão um montão de cinzas. A fumaça afastou-se do lugar do incêndio, arrastada pelo vento.
O que havia de vivo no moinho subsistiu.
A família do moleiro, uma alma, muitos pensamentos, e todavia um só construiu um moinho novo, um moinho grandioso, tão parecido com o outro que o velho até havia de gostar dele. E as pessoas continuavam a dizer:
Lá em cima do morro se ergue o moinho, de soberbo aspecto.
Mas o novo estava mais bem instalado, era mais moderno, o que já se pode chamar de progresso. A madeira velha, carcomida e podre desfizera-se em cinza e pó. O corpo do moinho, contudo, não ressuscitou das cinzas, como ele esperava.
É que o velho moinho tomava todas as coisas muito ao pé da letra, o que é um erro.
FIM
Os contos que estou transcrevendo são de livros muito antigos que ganhei de meu querido pai. Quando percebi que eles estavam ficando velhos e amarelados, fiquei com medo de perdê-los. Resolvi então salvá-los para sempre, digitando letra por letra e me envolvendo em cada história. Obrigada pai e mãe, amo vocês! E um obrigada às novas tecnologias que me permitirão salvar meus livros e dar a outras pessoas a oportunidade de se emocionarem com Os Contos de Grimn e Andersen como eu me emocionei.
quarta-feira, 27 de janeiro de 2016
quarta-feira, 13 de janeiro de 2016
NICOLAU GRANDE E NICOLAUZINHO - CONTOS DE ANDERSEN
Moravam em uma aldeia dois homens que tinham o mesmo nome: eram tocaios, pois ambos foram batizados com o nome de Nicolau. Um deles, porém, possuía quatro cavalos, enquanto o outro tinha apenas um. Para diferençá-los, começou o povo a chamar ao dono dos quatro cavalos Nicolau Grande, e ao pobre, que só tinha um, Nicolau Pequeno; e por fim este sendo o Nicolauzinho.
Vamos ver agora o que aconteceu aos dois tocaios, porque esta história é verdadeira.
Durante toda a semana o Nicolauzinho era obrigado a lavrar a terra do Nicolau Grande, e ainda por cima emprestar-lhe o seu único cavalo; em troca , o Nicolau Grande o ajudava, emprestando-lhe os quatro que tinha - mas isso somente uma vez por semana, e aos domingos.
E era coisa digna de se ver quando o Nicolauzinho lavrava a sua terra,e estalando o chicote no lombo dos cinco cavalos, pois naquele dia todos eram tão bons como o seu! E viva!
O sol irradiava, soberbo; os sinos repicavam, chamando os fiéis, que lá se iam em suas roupas domingueiras e seus livros de orações. Iam ouvir o sermão. De caminho viam o Nicolauzinho lavrando, com seus cinco cavalos. O homem não cabia em si de alegria e de orgulho. Agitava no ar o chicote que caía mil vezes sobre os cinco cavalos. E dizia:
- Upa, meus cinco cavalos! Upa!
- Pára com essa história- disse-lhe o Nicolau Grande. - Se repetires isso, dou tamanha pancada na cabeça do teu cavalo que o deixo morto!
- Prometo não repetir - disse Nicolauzinho.
Mas no que avistou outra pessoa que se aproximava e lhe dava os bons dias, ficou tão cheio de si por se ver lavrando o seu campo com cinco cavalos, que se pôs de novo a gritar:
- Upa, meus cinco cavalo! Upa!
- Espera que vou te dar "Upa, meus cinco cavalos!" Espera! - disse o Nicolau Grande.
E, pegando num malho, descarregou-o com tanta força sobre a cabeça do cavalo de Nicolauzinho, que animal caiu morto ali mesmo.
- Oh! Já não tenho cavalo nenhum! - exclamou o Nicolauzinho, chorando.
Mas depois esfolou o cavalo morto, secou o couro ao sol, meteu-o em saco e seguiu para a cidade a ver se o vendia.
Era longe a cidade e o caminho passava por dentro de um mato extenso e sombrio. O tempo transtornou-se, sobreveio uma tempestade e ele se perdeu. Antes que tornasse a achar o caminho chegou a noite, e agora não podia prosseguir viagem para a cidade nem voltar para casa.
Perto da estrada viu uma bela granja; estava fechada as persianas, mas a luz coava-se pelas frinchas e aparecia no alto das janelas. O homem foi bater à porta pensando que talvez lhe permitissem passar a noite ali.
Veio a dona da casa e, ouvindo o pedido, disse logo que não podia atendê-lo, porque o marido não estava em casa e não permitia que se albergasse gente estranha na sua ausência.
- Terei então de ficar cá fora mesmo - resmungou o Nicolauzinho.
Ali perto se erguia um grande galpão, ligado à casa por um passadiço coberto de palha.
Poderei dormir ali, pensou ele; será ótima cama, contanto que aquela cegonha não me belisque as pernas.
Porque avistara já uma cegonha de pé no palhiço, de guarda ao seu ninho.
Subiu, pois para aquele teto de colmo e tratou de se acomodar nele o melhor que pode. E, virando-se para ficar mais a agosto, descobriu que as persianas não iam até o alto da janela, de modo que podia ver o inteiro da sala, onde estava posta uma mesa bem servida; havia carne assada, peixe de excelente aparência, e vinho.
A mulher do granjeiro enchia de vinho o copo do conviva, que não era outro senão o coveiro enquanto ele mesmo, se servia de peixe, que parecia ser o seu prato favorito. ceavam sozinhos, pois não havia mais ninguém à mesa.
- Ah! Quem me dera apanhar um bocado daqueles! - suspirava o Nicolauzinho, esticando o pescoço para ver melhor.
E que havia ele de avistar? Um soberbo pastelão, grande e apetitoso! Tratavam-se bem, na verdade, aquele dois!
No mesmo instante ouviu um tropel de cavalo: alguém se dirigia à granja. Era o granjeiro que voltava.
Não era mau homem o granjeiro; mas tinha certas manias: por exemplo, não podia suportar a vista de um coveiro. Se por acaso encontrava um, enfurecia-se. Por isso o homem aproveitava a sua ausência para visitar a senhora, e esta, por sua vez, como era muito bondosa, obsequiava-o com tudo o que tinha de melhor na despensa. E foi por causa daquela esquisitice do granjeiro que ficaram muito assustados ao ouvi-lo chegar. A mulher pediu ao coveiro que se escondesse dentro da mala que ali estava. Tratou ele logo de obedecer, pois sabia bem a aversão do granjeiro pelos da sua profissão. E, enquanto ele se escondia, ela ocultava os manjares dentro do forno, porque se o marido visse aquela ceia indagaria certamente para quem fora preparada.
- Adeus, ceia! - suspirou Nicolauzinho, vendo-a assim desaparecer no forno.
- Quem está aí? - perguntou o dono da casa, olhando para cima.
Deu com o Nicolauzinho no telheiro e disse-lhe:
- Mas que estás fazendo aí? É melhor que desças e venhas comigo para dentro da casa!
Contou-lhe então o homem que se perdera e pediu-lhe uma pousada por aquela noite.
- Sim, sim, mas o que temos de fazer primeiro é comer alguma coisa.
Recebeu-os a mulher muito amavelmente, pôs logo a tolha na mesa grande e serviu-lhes um prato de mingau. O granjeiro estava com fome e comeu-o com apetite, mas o Nicolauzinho não podia afastar da ideia o bom assado, o peixe e o pastelão, que sabia estarem escondidos no forno.
Depôs o saco em que levava o couro do cavalo para vender, debaixo da mesa ao alcance dos pés. Não lhe era possível engolir aquele mingau; apertou com o pé o saco e o couro seco que estava lá dentro, deu um estalido.
- Cala-te! - disse então, olhando para o saco.
Mas ao mesmo tempo pisava mele com mais força, para que rangesse mais alto.
- Mas que levas aí nesse saco? - perguntou o granjeiro.
- Ora, é um feiticeiro; diz ele que não precisamos comer mingau, porque encantou o forno, que está cheio de assados, de peixe e de pastelão.
- Que me dizes! - exclamou o granjeiro, apresando-se em abrir o forno.
Lá encontrou, de fato, todos os bons manjares que sua esposa escondera, mas supondo, naturalmente, que era obra do feiticeiro oculto no saco.
A mulher não se atreveu a dizer palavra e foi levando os pratos para a mesa; os dois homens comeram à vontade - carne assada,pescado e pastelão. ali a pouco o Nicolauzinho tornou a pisar nos saco, que deu outro estalido forte.
- Que diz ele, agora? - indagou o dono da casa.
- Diz que também encantou três garrafas de vinho para nós, lá mesmo dentro do forno.
E a mulher teve de trazer para a mesa também o vinho que tinha escondido, e o granjeiro, bebendo-o, ficou muito alegre. Quem lhe dera possuir um feiticeiro como o que o Nicolauzinho levava no saco! E indagou então:
- Ele pode chamar também o Diabo? Estou agora tão legre que não me importaria se ele aparecesse.
- Oh! Certamente! - apressou-se o outro a responder. - Meu feiticeiro faz tudo quanto se lhe pede!
E, apertando mais que nunca os saco, continuou, dirigindo-se a ele:
- Não é verdade? Mas fala, responde!
E, virando-se para o dono da casa, explicou:
- Diz ele que o diabo é tão feio que não vale a pena vê-lo.
- Ora, eu não tenho medo dele. Com quem se parece?-----
- Vou falar nisso ao meu feiticeiro - respondeu o outro, apertando o saco.
- Que o senhor pode abrir a mala que está lá no canto e verá o diabo, todo encolhido; mas que deve segurar bem a tampa senão ele se escapa.
- Queres ajudar-me?
E o granjeiro caminhou em direção à mala onde a mulher tinha escondido o homem, que tremia de medo. Pegou a tampa, abrindo apenas uma frestinha e espiou para dentro. Imediatamente recuou, estremecendo.
- Ai! É verdade, está lá!
Para se refazer do susto, teve de tornar a beber. Assim ambos ficaram à mesa, a beber e a dar a língua, até alta noite.
- Tens de me vender o teu feiticeiro- disse por fim o dono da casa. - Darei por ele o que me pedires. Ofereço-te por ele uma boa soma.
- Não, não o vendo! Veja quanto serviço ele me presta!
- Mas eu desejo tanto possuir um - disse o granjeiro.
E tanto teimou que o outro acabou por dizer:
- Pois bem, foi tão hospitaleiro comigo que quero corresponder-lhe de alguma maneira. Vendo-lhe meu feiticeiro por uma fanga de moedas. Mas olhe: há de ser bem cheia, até a beirada!
- Bem cheia! - concordou o granjeiro. - Mas hás de levar também a mala. Não quero em casa nem mais uma hora! Quem pode saber se ele ainda não está lá dentro?
Deu-lhe pois o Nicolauzinho o saco com o couro seco e recebeu as moedas. A medida estava tão cheia que o granjeiro ainda lhe forneceu um carrinho de mão para levar tudo aquilo, e mais a mala.
- Adeus! - disse o Nicolauzinho.
E lá se foi levando o dinheiro e a enorme mala, com o homem dentro.
Passando o mato havia um rio largo e profundo. Tão rápida era a correnteza, que era muito difícil nadar rio acima. Tinham construído há pouco uma grande ponte e o Nicolauzinho começou a atravessá-la. Chegando ao meio parou e disse muito alto, para que o outro ouvisse:
- Ora, para que quero eu esta malha velha? Pesa mais do que se estivesse cheia de pedras! Já estou cansado de carregar tanto peso inútil... Vou atirá-la ao rio: se for flutuando rio abaixo chegará assim à minha casa; se não aparecer...pouco se perde!
Segurou então na alça da mala, erguendo-a um pouco, como se fosse jogá-la à água.
- Não, não! Deixa-me sair! Espera! - gritou uma voz lá dentro.
- Oh! - exclamou o Nicolauzinho, fingindo-se assustado. - Ainda está lá dentro! Vou atirá-lo ao rio para que se afogue duma vez!
- Não, não! Gritou o coveiro. - Dou-te uma fanga cheia de dinheiro se me deixares sair daqui!
- Oh! Isso é que é falar! - disse o Nicolauzinho, abrindo a mala.
O Nicolauzinho acompanhou o coveiro até a casa deste.
Paga a importância, ficou o carrinho bem cheio de moedas.
- Afinal, recebi muito bom preço pelo meu cavalo! - dizia o Nicolauzinho consigo.
Chegando em casa, despejou o carrinho em um canto do quarto. Vendo tanto dinheiro, pensou:
- Que raiva não sentiria o Nicolau Grande quando souber que enriqueci com o meu único cavalo!
Mandou então um rapazinho pedir ao Nicolau Grande que lhe emprestasse um almude.
- Para que quererá ele a medida? - disse consigo o outro.
E esfregou sebo em um canto da medida. Quando a recebeu de volta viu que brilhavam no fundo três moedas de prata, muito lustrosas. Precipitou-se imediatamente para a casa do outro.
- Mas que é isto? - exclamou ele. assombrado. - De onde tiraste tanto dinheiro?
- Do couro do meu cavalo. Vendi-o ontem.
-Foi bem pago, na verdade! - exclamou o Nicolau Grande.
Correu a casa, pegou na machadinha e matou seus quatro cavalos. Tirou-lhes o couro e lá se foi para cidade vendê-los.
- Peles, peles! Quem compra peles? - apregoava pelas ruas.
Corriam logo sapateiros e curtidores a perguntar o preço.
- Uma fanga de prata cada uma.
- Está louco? Pensas que temos dinheiro para medir alqueires?
Mas ele continuava o seu pregão:
- Peles! Peles!
E a quantos lhe perguntavam o preço dava resposta:
- Uma fanga de prata.
Mas ele que divertir-se à nossa custa! - diziam todos.
Os sapateiros pegaram no tirapé e os curtidores no avental de couro e saíram-lhe no encalço. Surram-no a valer, gritando por escárnio:
- Peles, peles! Pois toma peles! Agora vais ver o que é pele esfolada! Toma! E fora da cidade!
E o Nicolau Grande teve de correr a toda velocidade para salvar a própria pele: nunca na vida apanhara tamanha sova!
Ao entrar em casa dizia, furioso:
- O Nicolauzinho há de me pagar esta! Hei de matá-lo!
Ora, nesse dia tinha morrido a avó do Nicolauzinho. Posto que ela nunca tivesse sido boa para ele, ainda assim ficou muito triste. Deitou-a na sua própria cama, para ver se com o calor a avó se reanimava. e resolveu passar aquela noite sentado em uma cadeira, onde várias vezes já tinha dormido. Noite alta abriu-se a porta e entrou o Nicolau Grande, armado de machado. Sabia bem onde ficava a cama do Nicolauzinho. Dirigindo-se para aquele lado, descarregou com toda a força uma machadada na cabeça da velha avó morta, julgando que matava o outro Nicolau.
- Toma! É para não tornares a me enganar! - gritou ele.
E foi embora.----------------
- Que malvado! - exclamou o Nicolauzinho. - Vinha para me matar! Por sorte a coitada da avó já estava morta senão o bruto a mataria!
Vestiu então a vó morta o seu vestido domingueiro, pediu um cavalo emprestado a um vizinho, atrelou-o a um carrinho, botou nele o cadáver, bem recostado para não cair, e lá se foi pela estrada do mato. Ao nascer do sol chegava a uma pousada. Parou o carrinho e entrou para comer alguma coisa.
O albergueiro era um homem muito rico e também muito bom: mas tinha um gênio tão arrebatado como se fosse feito de pimenta e rapé.
- Bom dia - foi logo dizendo ele. - Como vens cedo e tão faceiro!
- É que vou de viagem para a cidade com minha avó; ela ficou sentada lá no carrinho, por que não quer entrar. Pode levar -lhe um copo de hidromel? Mas tem de gritar muito, pois é surda.
- Pois sim, levo- disse o estalajadeiro.
Encheu um copo de hidromel e foi levá-lo à avó morta, tão bem recostada no carro como se estivesse comodamente sentada.
- Aqui está um copo de hidromel que seu neto lhe manda - disse o albergueiro.
Mas a velha morta ficou bem quieta, sem nada responder.
- A senhora não ouve? - gritou o dono da casa mais alto que pode. - Seu neto lhe manda um copo de hidromel!
E tornou a gritar com quanta força tinha, sem que a velha se mexesse.
Então o homem irritou-se e atirou o copo cheio ao rosto da mulher; e não só a molhou toda, mas ainda a atirou do carro abaixo, porque estava apenas encostada e não amarrada.
Nisto saiu da estalagem o Nicolauzinho, gritando:
- Socorro! Socorro!
E, agarrando o homem pelo pescoço, disse-lhe:
- Como! O senhor matou minha avó! Olhe a brecha que lhe abriu na testa!
- Ah! Que infelicidade! - dizia o homem, torcendo as mãos. - A culpa toda é do meu gênio arrebatado! Oh! Meu querido Nicolauzinho, dar-te-ei uma fanga cheia de dinheiro, e enterrarei tua avó como se fosse a minha própria se me prometeres não dizer nada a ninguém! Porque se contares o caso me cortam a cabeça- e isso não é nada agradável, não é?
E o Nicolauzinho recebeu mais uma fanga de dinheiro. O estalajadeiro fez o enterro da avó do outro como faria o da sua própria; e o Nicolauzinho ao chegar à casa mandou outra vez pedir a medida emprestada ao outro Nicolau.
- Como? - exclamou este. - Então não o matei? Vou eu mesmo verificar que história é esta!
E foi em pessoa levar o almude.
- De onde tiraste tanto dinheiro? - perguntou, mais uma vez assombrado ao ver aquele montão de moedas.
- É que mataste minha avó pensando que me matavas a mim. Eu a vendi e deram-me por ela quatro alqueires de dinheiro.
- Isso é o que se chama bom preço! - disse o outro.
E voltou correndo para casa, pegou na machadinha e matou a avó de um golpe. Colocou-a em um carro e foi para a cidade; parou na farmácia e perguntou ao boticário se queria comprar uma pessoa morta.
- Mas quem é? E de onde a trouxeste? - indagou o negociante.
- É minha avó; matei-a e quero ver se me dão por ela uma fanga de dinheiro.
- Valha-nos Deus! Mas o senhor está louco! Não repita isso senão o levarão para o hospício! Ou pode ser enforcado!
E explicou que praticara um grande crime, pelo que devia ser castigado. O Nicolau Grande assustou-se tanto que saiu correndo da farmácia, trepou no carrinho de um salto, fustigou os cavalos e voltou a toda a brida para casa. Na farmácia pensaram todos que ele era louco, por isso não o perseguiram. Mas, correndo pela estrada, ia dizendo o Nicolau:
- Vais me pagar tudo por junto. Nicolauzinho!
Chegando a casa , pegou em um grande saco - o maior que encontrou- e foi procurar o outro:
- Mais uma vez me enganaste! Primeiro matei meus cavalos, agora matei minha avó! E és tu o único culpado de tudo isto. Mas agora não tornarás a rir de mim!
E, pegando o Nicolauzinho pela cintura, meteu-o no saco e deitou-o às costas, dizendo:
- Vais parar no rio!
Mas o rio ficava longe e o Nicolauzinho não era carga muito leve. A estrada passava por uma igreja e lá de dentro vinham os sons do órgão. O Nicolau Grande pensou que não seria de todo mau ouvir um hino antes de ir adiante; deixou, pois, o saco ao pé da porta e entrou na igreja: o Nicolauzinho não podia sair do saco por si e todo o mundo àquela hora estava lá dentro.
E o Nicolauzinho, dentro do saco, mexia-se para todos os lados, a ver se desatava a corda que fechava a boca. E gemia:
- Pobre de mim! Pobre de mim!
Nesse instante ia passando um vaqueiro, um velho de cabeça branca, com um longo cajado ao ombro. Conduzia uma ponta de bois e vacas. Os animais esbarraram no saco e derribaram-no. E lá de dentro vinham os lamentos:
- Pobre de mim! Sou ainda tão jovem para morrer! Ainda é muito cedo para ir para o céu!
- Pois amigo - disse o vaqueiro, sou já tão velho e ainda não consegui ir para lá!
- Então abra o saco- gritou o Nicoauzinho. - Fique no meu lugar que não tardará em chegar ao céu.
- Era isso mesmo que eu queria - disse o velho, desfazendo os nós e abrindo o saco. O Nicolauzinho não se fez de rogado para sair de dentro. O velho perguntou-lhe ainda:
- Mas tu te encarregas do gado?
E, à resposta afirmativa, entrou num instante para o saco, que o Nicolauzinho amarrou bem, antes de se por a caminho com a ponta de gado.
Pouco depois saía da igreja o outro Nicolau; ao erguer o saco observou que pesava menos, pois o velho vaqueiro era muito mais leve que o Nicolauzinho.
- Como parece leve, agora! - pensou ele. - Certamente é porque estive na igreja, e rezei.
Chegando ao rio, que era largo e profundo, lançou à água o saco com o velho vaqueiro. E gritou, pensando que falava com o Nicolauzinho.
Agora não tornarás a me enganar!
E rumou para casa. Mas ao chegar à encruzinlhada encontrou o Niclauzinho, que ia guiando o seu gado.
- Mas o que é isto? Então não morreste? Mas eu te afoguei!
- É verdade; não faz mais de meia hora que me atiraste ao rio!
- Mas de onde tiraste tão belos animais?
- Ah! É gado do mar -disse o outro. - Devo agradecer-te por me haveres afogado, pois foi graças a isso que cheguei onde queria e acho-me agora rico. Pois é o caso que me vi morto de medo, quando me achei no saco, sentindo o ar silvar nos meus ouvido, no momento em que me lançaste à água. Fui de vereda ao fundo; não me pisei, porque a grama lá é macia; e tão linda...Imediatamente o saco foi aberto por uma donzela muito formosa, vestida com uma roupagem da cor da neve e tendo uma grinalda verde sobre a cabeleira úmida. pegando-me na mão, disse-me ela:
- Tu por aqui, Nicolauzinho? Aqui está este gado para ti, e uma légua mais longe encontrarás outra tropa maior que também te ofereço.
Só então notei que o rio era uma grande estrada para as gentes do mar. Andavam pelo leito do rio, subindo da embocadura para a nascente; e lá era tudo coberto de lindas flores e de grama macia. os peixes nadavam abaixo e acima, e, ao passar por mim, pareciam pássaros voando no ar. Queria que visses como é bela a gente de lá e também o gado que pasta nos vales!
- Mas então por que tornaste a subir à terra? Eu não votaria tão cedo, se tudo lá é assim tão agradável!
- Ah! - disse o outro Nicolau - isto foi uma esperteza minha. Já te contei que a ninfa do mar me disse que a uma légua de distância eu acharia uma grande ponta de gado à minha espera. Ela falava em estrada, sim, mas queria dizer - rio- pois é só por onde pode transitar. Mas eu sei que a corrente dá voltas e mais voltas, alongando o caminho. Indo por terra, encurto muito a distãncia, atravessando os campo e indo ter de novo ao rio. Poupo assim meia milha de caminho e entro mais cedo na posse do meu gado.
- Mas que homem de sorte! - disse o Nicolau Grande. - E achas que eu também poderia ganhar algumas cabeças desse gado do mar se descesse ao fundo do rio?
- Com certeza! Mas eu não te levo até lá no saco, porque és muito pesado. Agora, se quiseres acompanha-me até a margem e entrar tu mesmo no saco, posso atirar-te ao fundo do rio - e o farei com o maior prazer, podes crê-lo!
- Obrigado! Mas se eu não encontrar gado nenhum quando chegar ao fundo, fica certo de que te darei uma boa sova quando eu voltar!
- Oh! Não sejas tão severo comigo!
Dirigiram-se para o rio. E assim que o gado avistou a água, atirou-se a ela com sofreguidão, pois os animais estavam sedentos.
- Vê como correm- disse o Nicolauzinho. - Estão com pressa de voltar de novo ao fundo.
- Não; tens de me ajudar primeiro a descer, senão sovo-te aqui mesmo!
E o Nicolau Grande meteu-se a toda a pressa no saco, que estava sobre o lombo de uma vaca.
afunde - recomendou ele.
- Mete dentro uma pedra grande, pois receio que não
- Não, não há perigo! - respondeu o Nicolauzinho.
E, se bem o outro o disse, melhor fez ele; meteu uma pedra grande dentro do saco, amarrou bem a boca, e - zás! - o Nicolau Grande caiu na água e foi direito ao fundo.
E, enquanto tangia o seu gado, a caminho da aldeia, ia o Nicolauzinho dizendo com os seus botões:
- Receio muito que ele não ache por lá nem uma única vaca...
Vamos ver agora o que aconteceu aos dois tocaios, porque esta história é verdadeira.
Durante toda a semana o Nicolauzinho era obrigado a lavrar a terra do Nicolau Grande, e ainda por cima emprestar-lhe o seu único cavalo; em troca , o Nicolau Grande o ajudava, emprestando-lhe os quatro que tinha - mas isso somente uma vez por semana, e aos domingos.
E era coisa digna de se ver quando o Nicolauzinho lavrava a sua terra,e estalando o chicote no lombo dos cinco cavalos, pois naquele dia todos eram tão bons como o seu! E viva!
O sol irradiava, soberbo; os sinos repicavam, chamando os fiéis, que lá se iam em suas roupas domingueiras e seus livros de orações. Iam ouvir o sermão. De caminho viam o Nicolauzinho lavrando, com seus cinco cavalos. O homem não cabia em si de alegria e de orgulho. Agitava no ar o chicote que caía mil vezes sobre os cinco cavalos. E dizia:
- Upa, meus cinco cavalos! Upa!
- Pára com essa história- disse-lhe o Nicolau Grande. - Se repetires isso, dou tamanha pancada na cabeça do teu cavalo que o deixo morto!
- Prometo não repetir - disse Nicolauzinho.
Mas no que avistou outra pessoa que se aproximava e lhe dava os bons dias, ficou tão cheio de si por se ver lavrando o seu campo com cinco cavalos, que se pôs de novo a gritar:
- Upa, meus cinco cavalo! Upa!
- Espera que vou te dar "Upa, meus cinco cavalos!" Espera! - disse o Nicolau Grande.
E, pegando num malho, descarregou-o com tanta força sobre a cabeça do cavalo de Nicolauzinho, que animal caiu morto ali mesmo.
- Oh! Já não tenho cavalo nenhum! - exclamou o Nicolauzinho, chorando.
Mas depois esfolou o cavalo morto, secou o couro ao sol, meteu-o em saco e seguiu para a cidade a ver se o vendia.
Era longe a cidade e o caminho passava por dentro de um mato extenso e sombrio. O tempo transtornou-se, sobreveio uma tempestade e ele se perdeu. Antes que tornasse a achar o caminho chegou a noite, e agora não podia prosseguir viagem para a cidade nem voltar para casa.
Perto da estrada viu uma bela granja; estava fechada as persianas, mas a luz coava-se pelas frinchas e aparecia no alto das janelas. O homem foi bater à porta pensando que talvez lhe permitissem passar a noite ali.
Veio a dona da casa e, ouvindo o pedido, disse logo que não podia atendê-lo, porque o marido não estava em casa e não permitia que se albergasse gente estranha na sua ausência.
- Terei então de ficar cá fora mesmo - resmungou o Nicolauzinho.
Ali perto se erguia um grande galpão, ligado à casa por um passadiço coberto de palha.
Poderei dormir ali, pensou ele; será ótima cama, contanto que aquela cegonha não me belisque as pernas.
Porque avistara já uma cegonha de pé no palhiço, de guarda ao seu ninho.
Subiu, pois para aquele teto de colmo e tratou de se acomodar nele o melhor que pode. E, virando-se para ficar mais a agosto, descobriu que as persianas não iam até o alto da janela, de modo que podia ver o inteiro da sala, onde estava posta uma mesa bem servida; havia carne assada, peixe de excelente aparência, e vinho.
A mulher do granjeiro enchia de vinho o copo do conviva, que não era outro senão o coveiro enquanto ele mesmo, se servia de peixe, que parecia ser o seu prato favorito. ceavam sozinhos, pois não havia mais ninguém à mesa.
- Ah! Quem me dera apanhar um bocado daqueles! - suspirava o Nicolauzinho, esticando o pescoço para ver melhor.
E que havia ele de avistar? Um soberbo pastelão, grande e apetitoso! Tratavam-se bem, na verdade, aquele dois!
No mesmo instante ouviu um tropel de cavalo: alguém se dirigia à granja. Era o granjeiro que voltava.
Não era mau homem o granjeiro; mas tinha certas manias: por exemplo, não podia suportar a vista de um coveiro. Se por acaso encontrava um, enfurecia-se. Por isso o homem aproveitava a sua ausência para visitar a senhora, e esta, por sua vez, como era muito bondosa, obsequiava-o com tudo o que tinha de melhor na despensa. E foi por causa daquela esquisitice do granjeiro que ficaram muito assustados ao ouvi-lo chegar. A mulher pediu ao coveiro que se escondesse dentro da mala que ali estava. Tratou ele logo de obedecer, pois sabia bem a aversão do granjeiro pelos da sua profissão. E, enquanto ele se escondia, ela ocultava os manjares dentro do forno, porque se o marido visse aquela ceia indagaria certamente para quem fora preparada.
- Adeus, ceia! - suspirou Nicolauzinho, vendo-a assim desaparecer no forno.
- Quem está aí? - perguntou o dono da casa, olhando para cima.
Deu com o Nicolauzinho no telheiro e disse-lhe:
- Mas que estás fazendo aí? É melhor que desças e venhas comigo para dentro da casa!
Contou-lhe então o homem que se perdera e pediu-lhe uma pousada por aquela noite.
- Sim, sim, mas o que temos de fazer primeiro é comer alguma coisa.
Recebeu-os a mulher muito amavelmente, pôs logo a tolha na mesa grande e serviu-lhes um prato de mingau. O granjeiro estava com fome e comeu-o com apetite, mas o Nicolauzinho não podia afastar da ideia o bom assado, o peixe e o pastelão, que sabia estarem escondidos no forno.
Depôs o saco em que levava o couro do cavalo para vender, debaixo da mesa ao alcance dos pés. Não lhe era possível engolir aquele mingau; apertou com o pé o saco e o couro seco que estava lá dentro, deu um estalido.
- Cala-te! - disse então, olhando para o saco.
Mas ao mesmo tempo pisava mele com mais força, para que rangesse mais alto.
- Mas que levas aí nesse saco? - perguntou o granjeiro.
- Ora, é um feiticeiro; diz ele que não precisamos comer mingau, porque encantou o forno, que está cheio de assados, de peixe e de pastelão.
- Que me dizes! - exclamou o granjeiro, apresando-se em abrir o forno.
Lá encontrou, de fato, todos os bons manjares que sua esposa escondera, mas supondo, naturalmente, que era obra do feiticeiro oculto no saco.
A mulher não se atreveu a dizer palavra e foi levando os pratos para a mesa; os dois homens comeram à vontade - carne assada,pescado e pastelão. ali a pouco o Nicolauzinho tornou a pisar nos saco, que deu outro estalido forte.
- Que diz ele, agora? - indagou o dono da casa.
- Diz que também encantou três garrafas de vinho para nós, lá mesmo dentro do forno.
E a mulher teve de trazer para a mesa também o vinho que tinha escondido, e o granjeiro, bebendo-o, ficou muito alegre. Quem lhe dera possuir um feiticeiro como o que o Nicolauzinho levava no saco! E indagou então:
- Ele pode chamar também o Diabo? Estou agora tão legre que não me importaria se ele aparecesse.
- Oh! Certamente! - apressou-se o outro a responder. - Meu feiticeiro faz tudo quanto se lhe pede!
E, apertando mais que nunca os saco, continuou, dirigindo-se a ele:
- Não é verdade? Mas fala, responde!
E, virando-se para o dono da casa, explicou:
- Diz ele que o diabo é tão feio que não vale a pena vê-lo.
- Ora, eu não tenho medo dele. Com quem se parece?-----
- Vou falar nisso ao meu feiticeiro - respondeu o outro, apertando o saco.
- Que o senhor pode abrir a mala que está lá no canto e verá o diabo, todo encolhido; mas que deve segurar bem a tampa senão ele se escapa.
- Queres ajudar-me?
E o granjeiro caminhou em direção à mala onde a mulher tinha escondido o homem, que tremia de medo. Pegou a tampa, abrindo apenas uma frestinha e espiou para dentro. Imediatamente recuou, estremecendo.
- Ai! É verdade, está lá!
Para se refazer do susto, teve de tornar a beber. Assim ambos ficaram à mesa, a beber e a dar a língua, até alta noite.
- Tens de me vender o teu feiticeiro- disse por fim o dono da casa. - Darei por ele o que me pedires. Ofereço-te por ele uma boa soma.
- Não, não o vendo! Veja quanto serviço ele me presta!
- Mas eu desejo tanto possuir um - disse o granjeiro.
E tanto teimou que o outro acabou por dizer:
- Pois bem, foi tão hospitaleiro comigo que quero corresponder-lhe de alguma maneira. Vendo-lhe meu feiticeiro por uma fanga de moedas. Mas olhe: há de ser bem cheia, até a beirada!
- Bem cheia! - concordou o granjeiro. - Mas hás de levar também a mala. Não quero em casa nem mais uma hora! Quem pode saber se ele ainda não está lá dentro?
Deu-lhe pois o Nicolauzinho o saco com o couro seco e recebeu as moedas. A medida estava tão cheia que o granjeiro ainda lhe forneceu um carrinho de mão para levar tudo aquilo, e mais a mala.
- Adeus! - disse o Nicolauzinho.
E lá se foi levando o dinheiro e a enorme mala, com o homem dentro.
Passando o mato havia um rio largo e profundo. Tão rápida era a correnteza, que era muito difícil nadar rio acima. Tinham construído há pouco uma grande ponte e o Nicolauzinho começou a atravessá-la. Chegando ao meio parou e disse muito alto, para que o outro ouvisse:
- Ora, para que quero eu esta malha velha? Pesa mais do que se estivesse cheia de pedras! Já estou cansado de carregar tanto peso inútil... Vou atirá-la ao rio: se for flutuando rio abaixo chegará assim à minha casa; se não aparecer...pouco se perde!
Segurou então na alça da mala, erguendo-a um pouco, como se fosse jogá-la à água.
- Não, não! Deixa-me sair! Espera! - gritou uma voz lá dentro.
- Oh! - exclamou o Nicolauzinho, fingindo-se assustado. - Ainda está lá dentro! Vou atirá-lo ao rio para que se afogue duma vez!
- Não, não! Gritou o coveiro. - Dou-te uma fanga cheia de dinheiro se me deixares sair daqui!
- Oh! Isso é que é falar! - disse o Nicolauzinho, abrindo a mala.
O Nicolauzinho acompanhou o coveiro até a casa deste.
Paga a importância, ficou o carrinho bem cheio de moedas.
- Afinal, recebi muito bom preço pelo meu cavalo! - dizia o Nicolauzinho consigo.
Chegando em casa, despejou o carrinho em um canto do quarto. Vendo tanto dinheiro, pensou:
- Que raiva não sentiria o Nicolau Grande quando souber que enriqueci com o meu único cavalo!
Mandou então um rapazinho pedir ao Nicolau Grande que lhe emprestasse um almude.
- Para que quererá ele a medida? - disse consigo o outro.
E esfregou sebo em um canto da medida. Quando a recebeu de volta viu que brilhavam no fundo três moedas de prata, muito lustrosas. Precipitou-se imediatamente para a casa do outro.
- Mas que é isto? - exclamou ele. assombrado. - De onde tiraste tanto dinheiro?
- Do couro do meu cavalo. Vendi-o ontem.
-Foi bem pago, na verdade! - exclamou o Nicolau Grande.
Correu a casa, pegou na machadinha e matou seus quatro cavalos. Tirou-lhes o couro e lá se foi para cidade vendê-los.
- Peles, peles! Quem compra peles? - apregoava pelas ruas.
Corriam logo sapateiros e curtidores a perguntar o preço.
- Uma fanga de prata cada uma.
- Está louco? Pensas que temos dinheiro para medir alqueires?
Mas ele continuava o seu pregão:
- Peles! Peles!
E a quantos lhe perguntavam o preço dava resposta:
- Uma fanga de prata.
Mas ele que divertir-se à nossa custa! - diziam todos.
Os sapateiros pegaram no tirapé e os curtidores no avental de couro e saíram-lhe no encalço. Surram-no a valer, gritando por escárnio:
- Peles, peles! Pois toma peles! Agora vais ver o que é pele esfolada! Toma! E fora da cidade!
E o Nicolau Grande teve de correr a toda velocidade para salvar a própria pele: nunca na vida apanhara tamanha sova!
Ao entrar em casa dizia, furioso:
- O Nicolauzinho há de me pagar esta! Hei de matá-lo!
Ora, nesse dia tinha morrido a avó do Nicolauzinho. Posto que ela nunca tivesse sido boa para ele, ainda assim ficou muito triste. Deitou-a na sua própria cama, para ver se com o calor a avó se reanimava. e resolveu passar aquela noite sentado em uma cadeira, onde várias vezes já tinha dormido. Noite alta abriu-se a porta e entrou o Nicolau Grande, armado de machado. Sabia bem onde ficava a cama do Nicolauzinho. Dirigindo-se para aquele lado, descarregou com toda a força uma machadada na cabeça da velha avó morta, julgando que matava o outro Nicolau.
- Toma! É para não tornares a me enganar! - gritou ele.
E foi embora.----------------
- Que malvado! - exclamou o Nicolauzinho. - Vinha para me matar! Por sorte a coitada da avó já estava morta senão o bruto a mataria!
Vestiu então a vó morta o seu vestido domingueiro, pediu um cavalo emprestado a um vizinho, atrelou-o a um carrinho, botou nele o cadáver, bem recostado para não cair, e lá se foi pela estrada do mato. Ao nascer do sol chegava a uma pousada. Parou o carrinho e entrou para comer alguma coisa.
O albergueiro era um homem muito rico e também muito bom: mas tinha um gênio tão arrebatado como se fosse feito de pimenta e rapé.
- Bom dia - foi logo dizendo ele. - Como vens cedo e tão faceiro!
- É que vou de viagem para a cidade com minha avó; ela ficou sentada lá no carrinho, por que não quer entrar. Pode levar -lhe um copo de hidromel? Mas tem de gritar muito, pois é surda.
- Pois sim, levo- disse o estalajadeiro.
Encheu um copo de hidromel e foi levá-lo à avó morta, tão bem recostada no carro como se estivesse comodamente sentada.
- Aqui está um copo de hidromel que seu neto lhe manda - disse o albergueiro.
Mas a velha morta ficou bem quieta, sem nada responder.
- A senhora não ouve? - gritou o dono da casa mais alto que pode. - Seu neto lhe manda um copo de hidromel!
E tornou a gritar com quanta força tinha, sem que a velha se mexesse.
Então o homem irritou-se e atirou o copo cheio ao rosto da mulher; e não só a molhou toda, mas ainda a atirou do carro abaixo, porque estava apenas encostada e não amarrada.
Nisto saiu da estalagem o Nicolauzinho, gritando:
- Socorro! Socorro!
E, agarrando o homem pelo pescoço, disse-lhe:
- Como! O senhor matou minha avó! Olhe a brecha que lhe abriu na testa!
- Ah! Que infelicidade! - dizia o homem, torcendo as mãos. - A culpa toda é do meu gênio arrebatado! Oh! Meu querido Nicolauzinho, dar-te-ei uma fanga cheia de dinheiro, e enterrarei tua avó como se fosse a minha própria se me prometeres não dizer nada a ninguém! Porque se contares o caso me cortam a cabeça- e isso não é nada agradável, não é?
E o Nicolauzinho recebeu mais uma fanga de dinheiro. O estalajadeiro fez o enterro da avó do outro como faria o da sua própria; e o Nicolauzinho ao chegar à casa mandou outra vez pedir a medida emprestada ao outro Nicolau.
- Como? - exclamou este. - Então não o matei? Vou eu mesmo verificar que história é esta!
E foi em pessoa levar o almude.
- De onde tiraste tanto dinheiro? - perguntou, mais uma vez assombrado ao ver aquele montão de moedas.
- É que mataste minha avó pensando que me matavas a mim. Eu a vendi e deram-me por ela quatro alqueires de dinheiro.
- Isso é o que se chama bom preço! - disse o outro.
E voltou correndo para casa, pegou na machadinha e matou a avó de um golpe. Colocou-a em um carro e foi para a cidade; parou na farmácia e perguntou ao boticário se queria comprar uma pessoa morta.
- Mas quem é? E de onde a trouxeste? - indagou o negociante.
- É minha avó; matei-a e quero ver se me dão por ela uma fanga de dinheiro.
- Valha-nos Deus! Mas o senhor está louco! Não repita isso senão o levarão para o hospício! Ou pode ser enforcado!
E explicou que praticara um grande crime, pelo que devia ser castigado. O Nicolau Grande assustou-se tanto que saiu correndo da farmácia, trepou no carrinho de um salto, fustigou os cavalos e voltou a toda a brida para casa. Na farmácia pensaram todos que ele era louco, por isso não o perseguiram. Mas, correndo pela estrada, ia dizendo o Nicolau:
- Vais me pagar tudo por junto. Nicolauzinho!
Chegando a casa , pegou em um grande saco - o maior que encontrou- e foi procurar o outro:
- Mais uma vez me enganaste! Primeiro matei meus cavalos, agora matei minha avó! E és tu o único culpado de tudo isto. Mas agora não tornarás a rir de mim!
E, pegando o Nicolauzinho pela cintura, meteu-o no saco e deitou-o às costas, dizendo:
- Vais parar no rio!
Mas o rio ficava longe e o Nicolauzinho não era carga muito leve. A estrada passava por uma igreja e lá de dentro vinham os sons do órgão. O Nicolau Grande pensou que não seria de todo mau ouvir um hino antes de ir adiante; deixou, pois, o saco ao pé da porta e entrou na igreja: o Nicolauzinho não podia sair do saco por si e todo o mundo àquela hora estava lá dentro.
E o Nicolauzinho, dentro do saco, mexia-se para todos os lados, a ver se desatava a corda que fechava a boca. E gemia:
- Pobre de mim! Pobre de mim!
Nesse instante ia passando um vaqueiro, um velho de cabeça branca, com um longo cajado ao ombro. Conduzia uma ponta de bois e vacas. Os animais esbarraram no saco e derribaram-no. E lá de dentro vinham os lamentos:
- Pobre de mim! Sou ainda tão jovem para morrer! Ainda é muito cedo para ir para o céu!
- Pois amigo - disse o vaqueiro, sou já tão velho e ainda não consegui ir para lá!
- Então abra o saco- gritou o Nicoauzinho. - Fique no meu lugar que não tardará em chegar ao céu.
- Era isso mesmo que eu queria - disse o velho, desfazendo os nós e abrindo o saco. O Nicolauzinho não se fez de rogado para sair de dentro. O velho perguntou-lhe ainda:
- Mas tu te encarregas do gado?
E, à resposta afirmativa, entrou num instante para o saco, que o Nicolauzinho amarrou bem, antes de se por a caminho com a ponta de gado.
Pouco depois saía da igreja o outro Nicolau; ao erguer o saco observou que pesava menos, pois o velho vaqueiro era muito mais leve que o Nicolauzinho.
- Como parece leve, agora! - pensou ele. - Certamente é porque estive na igreja, e rezei.
Chegando ao rio, que era largo e profundo, lançou à água o saco com o velho vaqueiro. E gritou, pensando que falava com o Nicolauzinho.
Agora não tornarás a me enganar!
E rumou para casa. Mas ao chegar à encruzinlhada encontrou o Niclauzinho, que ia guiando o seu gado.
- Mas o que é isto? Então não morreste? Mas eu te afoguei!
- É verdade; não faz mais de meia hora que me atiraste ao rio!
- Mas de onde tiraste tão belos animais?
- Ah! É gado do mar -disse o outro. - Devo agradecer-te por me haveres afogado, pois foi graças a isso que cheguei onde queria e acho-me agora rico. Pois é o caso que me vi morto de medo, quando me achei no saco, sentindo o ar silvar nos meus ouvido, no momento em que me lançaste à água. Fui de vereda ao fundo; não me pisei, porque a grama lá é macia; e tão linda...Imediatamente o saco foi aberto por uma donzela muito formosa, vestida com uma roupagem da cor da neve e tendo uma grinalda verde sobre a cabeleira úmida. pegando-me na mão, disse-me ela:
- Tu por aqui, Nicolauzinho? Aqui está este gado para ti, e uma légua mais longe encontrarás outra tropa maior que também te ofereço.
Só então notei que o rio era uma grande estrada para as gentes do mar. Andavam pelo leito do rio, subindo da embocadura para a nascente; e lá era tudo coberto de lindas flores e de grama macia. os peixes nadavam abaixo e acima, e, ao passar por mim, pareciam pássaros voando no ar. Queria que visses como é bela a gente de lá e também o gado que pasta nos vales!
- Mas então por que tornaste a subir à terra? Eu não votaria tão cedo, se tudo lá é assim tão agradável!
- Ah! - disse o outro Nicolau - isto foi uma esperteza minha. Já te contei que a ninfa do mar me disse que a uma légua de distância eu acharia uma grande ponta de gado à minha espera. Ela falava em estrada, sim, mas queria dizer - rio- pois é só por onde pode transitar. Mas eu sei que a corrente dá voltas e mais voltas, alongando o caminho. Indo por terra, encurto muito a distãncia, atravessando os campo e indo ter de novo ao rio. Poupo assim meia milha de caminho e entro mais cedo na posse do meu gado.
- Mas que homem de sorte! - disse o Nicolau Grande. - E achas que eu também poderia ganhar algumas cabeças desse gado do mar se descesse ao fundo do rio?
- Com certeza! Mas eu não te levo até lá no saco, porque és muito pesado. Agora, se quiseres acompanha-me até a margem e entrar tu mesmo no saco, posso atirar-te ao fundo do rio - e o farei com o maior prazer, podes crê-lo!
- Obrigado! Mas se eu não encontrar gado nenhum quando chegar ao fundo, fica certo de que te darei uma boa sova quando eu voltar!
- Oh! Não sejas tão severo comigo!
Dirigiram-se para o rio. E assim que o gado avistou a água, atirou-se a ela com sofreguidão, pois os animais estavam sedentos.
- Vê como correm- disse o Nicolauzinho. - Estão com pressa de voltar de novo ao fundo.
- Não; tens de me ajudar primeiro a descer, senão sovo-te aqui mesmo!
E o Nicolau Grande meteu-se a toda a pressa no saco, que estava sobre o lombo de uma vaca.
afunde - recomendou ele.
- Mete dentro uma pedra grande, pois receio que não
- Não, não há perigo! - respondeu o Nicolauzinho.
E, se bem o outro o disse, melhor fez ele; meteu uma pedra grande dentro do saco, amarrou bem a boca, e - zás! - o Nicolau Grande caiu na água e foi direito ao fundo.
E, enquanto tangia o seu gado, a caminho da aldeia, ia o Nicolauzinho dizendo com os seus botões:
- Receio muito que ele não ache por lá nem uma única vaca...
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